Subsídio de renda pode chegar até 100 mil famílias com taxa de esforço acima de 35%

Marina Gonçalves, ministra da Habitação, revela que o subsídio de renda pode abranger 100 mil famílias. O arrendamento coercivo vai obrigar a rendas baixas, mas não dará direito a isenção fiscal.


No âmbito do pacote legislativo desenhado para dar resposta à crise na habitação, o Governo vai criar um subsídio de renda dirigido aos agregados com uma taxa de esforço superior a 35%, mas impõe vários limites no acesso a este apoio: só poderão beneficiar dele as famílias com rendimentos até ao sexto escalão de IRS e com rendas até aos limites previstos no programa Porta 65. Ao todo, o programa poderá abranger cerca de 100 mil famílias.

Já o regime de arrendamento coercivo vai impor a celebração de contratos por períodos de cinco anos. As rendas destes contratos serão limitadas de acordo com os valores previstos no Programa de Arrendamento Acessível (PAA), mas, ao contrário dos proprietários que participam voluntariamente nesse programa, aqueles que tiverem as suas casas arrendadas coercivamente não terão direito a isenções fiscais, apesar de serem obrigados a praticar rendas 20% abaixo do mercado.

Comecemos pela medida que tem criado mais polémica, o arrendamento coercivo. Esta é aquela proposta que, por mais discussão pública que exista, é mesmo para seguir em frente?
Temos de desconstruir o mito à volta desta medida. Estamos a construir um conjunto de instrumentos que nos permitem chegar ao nosso objectivo, que é garantir que as pessoas têm acesso à habitação. Não estamos a criar nada de novo, estamos a regulamentar uma obrigação que decorre da Lei de Bases de Solo e da Lei de Bases da Habitação, que diz que há um dever de utilizar o património. É precisamente por isso que colocamos este instrumento, como outros países fazem, para garantir que este dever de utilização pode ser cumprido na sua plenitude.

E se houver dúvidas sobre a constitucionalidade desta medida?
É legítimo que se levantem essas questões. Temos a convicção de que esta medida é constitucional. Não estamos a dizer que, agora, a política pública de habitação vai fazer-se entrando na casa das pessoas. É importante, também, vermos as excepções desta figura. Este é mais um instrumento na política pública, não é o prioritário. Mas é nosso dever ter ferramentas para garantir aquele que é um direito constitucional. E o Tribunal Constitucional já teve posições de proporcionalidade quanto ao direito de propriedade que eram, aliás, mais agressivas do que esta.

Durante quanto tempo é que o Estado pode requisitar uma casa para arrendamento coercivo?
Isto não é uma requisição, é uma posse administrativa, porque não pomos em causa a propriedade. O que temos pensado é celebrar contratos de arrendamento de cinco anos. Mas isto tem de ser sempre salvaguardado: o património é do proprietário daquele imóvel e, portanto, a utilização pode e deve ser definida pelo proprietário. Não vamos impedir que, antes de chegarmos à posse administrativa, o proprietário possa dar outro uso ao imóvel ou, se o colocar no arrendamento, que o faça com outras regras. Por isso é que este modelo pressupõe um trabalho prévio de notificação do proprietário, para que ele possa, por si, disponibilizar o imóvel.

O proprietário terá liberdade para cessar esse contrato se quiser dar outro uso ao imóvel?
As situações em que o proprietário precisar da casa para si terão de ser acauteladas.

A partir do momento em que existe esse arrendamento forçado e existe um contrato de arrendamento, ele só poderá ser cessado nos casos em que o proprietário necessite da casa para habitação própria?
Não queria ser tão taxativa, estamos agora a desenhar as situações em que isso pode acontecer. Dei esse exemplo porque esse é claro para nós. Mas não queria ser taxativa e dizer que está fechado.

Qual o prazo que os proprietários terão para dar resposta ao Estado?
Ainda não definimos qual será o prazo.

Mas estamos a falar de meses ou de semanas?
Não estamos a falar, certamente, de meses. Não estamos a falar de seis meses ou de um ano para disponibilizar a casa. Estaremos sempre a falar de semanas. Mas não temos o prazo fechado. Queremos que as pessoas tenham tempo para a disponibilização dos imóveis. Cinco ou dez dias não permitiriam que um proprietário pudesse dar uso àquele imóvel.

Quando um imóvel for arrendado coercivamente, as rendas ficarão limitadas aos valores praticados no PAA [Programa de Apoio ao Arrendamento]. Os proprietários que participam nesse programa têm direito a uma isenção fiscal total sobre os rendimentos prediais. Os proprietários dos imóveis arrendados coercivamente também terão isenção?
A isenção fiscal pressupõe que o arrendamento seja feito pelo senhorio. Esta é uma situação em que é o Estado que se sub-roga na posição de senhorio, numa relação com o arrendatário. Não há um arrendamento por parte do proprietário.

Mas as rendas ficarão 20% abaixo da mediana do mercado. No PAA, esses proprietários têm direito a isenções fiscais.
Porque o proprietário é o senhorio. Numa situação em que o proprietário é o senhorio, obviamente, tem direito às isenções fiscais. É um programa voluntário. Aqui, não estamos a falar disso. É um último reduto, em que o Estado se sub-roga na posição de senhorio. O senhorio é o Estado, sem prejuízo de a rentabilidade que se gera ser do proprietário, porque estamos a falar de posse e não de ficar com o direito de propriedade. A não ser que tenhamos uma despesa com o imóvel e tenhamos de nos ressarcir, a verba [da renda] é do proprietário do imóvel.

Não existe uma injustiça, por exemplo, em relação a proprietários de alojamento local que transfiram as casas para o arrendamento habitacional, que terão direito a isenções fiscais independentemente da renda que pratiquem?
Há uma grande diferença. Estamos a falar de uma habitação que tinha uma rentabilidade que era zero e que passará a ter a rentabilidade da renda. Não vamos aumentar a carga fiscal, vamos rentabilizar as casas e a renda é do proprietário. Verdadeiramente, o proprietário tem um ganho. O caso do alojamento local tem de ser visto no conjunto daquilo que estamos a propor para o sector. Estamos a criar um incentivo para que quem hoje tem alojamento local passe para o arrendamento tradicional.

Os imóveis devolutos da Igreja Católica também serão abrangidos pelo arrendamento coercivo?
Todos temos a obrigação, desde o Estado, até ao terceiro sector, até à Igreja, até aos proprietários privados, de dar uso ao nosso património. Este é um dever geral, o dever de utilização do património não tem excepções, é um dever aplicado a todos.

Também à Igreja Católica?
A todos.

O Estado vai assumir o pagamento, aos proprietários, das rendas em dívida por parte dos inquilinos. Irá cobrar essas dívidas aos inquilinos, mas terá em conta “causas socialmente atendíveis” que podem justificar o não pagamento de rendas. Que causas são essas?
Situações como desemprego, quebra de rendimentos decorrente de despesas adicionais de saúde ou educação, uma situação de divórcio em que há uma quebra de rendimentos. Estou a ser exemplificativa, mas estas são situações que a Segurança Social já acautela. O que estamos a fazer é alargar o regime mas, sobretudo, a tentar ser mais eficazes na resposta que queremos dar a estas situações. Queremos mesmo garantir que o senhorio tem segurança no arrendamento, mas, também, que a família que não pagou a renda por uma situação deste género pode ter uma solução mais rápida.

O apoio extraordinário ao pagamento das rendas destina-se a famílias com uma taxa de esforço superior a 35%, com rendimentos até ao sexto escalão de IRS, contratos de arrendamento celebrados até Dezembro de 2022 e rendas dentro dos limites máximos previstos no Porta 65. Isto limita bastante o potencial universo de beneficiários. Quantas famílias poderão vir a beneficiar deste apoio?
Este apoio é para o arrendamento que já hoje existe, o que explica o porquê de termos uma data [Dezembro de 2022] definida. Relativamente ao sexto escalão de IRS, o grosso da taxa de esforço superior a 35% está nestes escalões. Portanto, a opção teve a ver com a realidade que observamos na comparação entre o rendimento das famílias e as rendas que são cobradas. Quanto aos limites de renda, é importante enquadrar este apoio nos instrumentos que temos. O Porta 65 tem estes limites de renda por tipologia e consideramos importante ter essa base. Dando um exemplo para clarificar: uma família com quatro pessoas pode ter uma renda até ao limite que está definido para um T4, ainda que viva num T3.

Mas sabemos a quantas famílias é que este apoio poderá chegar?
Sem fazer este enquadramento da tipologia, ou seja, olhando só para rendimento e rendas, são à volta de 100 mil famílias, mas este número tem de ser enquadrado neste critério, que implicará uma análise mais fina dos dados, que ainda não temos.

A intenção do Governo de aumentar o parque habitacional público de 2% para 5% do total mantém-se?
O objectivo mantém-se e deve manter-se. Só temos 2% de parque habitacional público e isso faz com que, no momento de dar respostas, tenhamos uma capacidade diminuta e de o Estado ser um garante do direito à habitação, como fazemos com a educação e com a saúde.

Em que prazo é possível chegarmos a esse patamar?
Os 5% é uma meta de médio prazo, mas queremos mesmo reforçar o parque habitacional público sem definir um ano de meta. Os nossos objectivos são sempre traçados com vontade de chegar ao máximo possível. Temos um objectivo de legislatura de 5% de parque público e com apoio público.

O Governo já tem esse objectivo, pelo menos, desde 2017. Estamos em 2023 e o parque público continua a ser 2%. O que é que muda agora?
A reabilitação e a construção de parque público habitacional demora o mesmo tempo que uma obra privada, se calhar mais. Há todo um conjunto de passos que não são visíveis, mas que estão a ser dados. Até termos a empreitada, que é o momento visível da concretização deste objectivo, temos um conjunto de procedimentos, que começam antes mesmo do projecto. E eles foram feitos. O Estado, o IHRU ou os municípios não estiveram parados a ver o tempo a passar. De um dia para o outro, não se aumenta o parque público de 2% para 5%, isso não se faz num ano ou dois. E quem diz 5%, diz aumentar essa fasquia. Temos de, a longo prazo, conseguir aumentar essa fasquia.

Tem essa ambição?
Certamente, não será nesta legislatura. Mas, enquanto Estado, devemos ter esta ambição de reforçar para lá dos 5%. Devemos comparar-nos bem com a Europa. Temos exemplos de 40%, mas temos médias de 10% a 12%. Temos de ser ambiciosos na nossa expectativa, mas também sermos correctos e realistas na forma de alcança-la. Não será numa legislatura, certamente, que alcançaremos 10% de parque público. Mas devemos assumir essa responsabilidade colectiva, de tratar a habitação como tratamos a saúde ou a educação, não nos ficarmos por um objectivo que definimos a médio prazo.

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