“Estamos em guerra com a natureza”. Quem quer salvar o mundo em Montreal?
Na COP15 espera-se um acordo capaz de travar a perda de biodiversidade até 2030 e que haja regeneração dos ecossistemas até 2050. “Estamos a tratar a natureza como uma casa de banho”, avisa Guterres.
Foi com múltiplos apelos à urgência de que os países cheguem a compromissos para travar a destruição da natureza que se iniciou em Montreal, no Canadá, a 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica – a COP15. Mas as perspectivas de consenso parecem ainda distantes. “Foi feito algum progresso, mas não tanto como seria o esperado e necessário”, disse Elizabeth Maruma Mrema, secretária executiva da Convenção, na conferência de imprensa de abertura da COP15, esta terça-feira.
“Pessoalmente, tenho de admitir que os delegados não foram tão longe como esperávamos”, disse Elizabeth Maruma Mrema. Referia-se às discussões de vários grupos de trabalho que decorreram em Montreal entre 3 e 5 de Dezembro, para preparar o documento que será trabalhado agora na COP15, até 19 de Novembro. Este texto tem ainda muitos espaços em branco, que terão de ser preenchidos durante as negociações durante as próximas duas semanas, para produzir o acordo final.
Pretende-se que da COP15 saia um novo Quadro Global de Biodiversidade, que trace o caminho para travar a destruição dos ecossistemas até 2030 e depois, até 2050, lance um compromisso para uma nova visão: “Garantir que as nossas sociedades se desenvolvam em harmonia com a natureza”, enunciou Steven Guilbeault, ministro do Ambiente e das Alterações Climáticas do Canadá.
“Estamos em guerra com a natureza. Esta conferência é sobre a tarefa urgente de fazer a paz. Porque hoje não estamos em harmonia com a natureza”, disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na sessão de abertura da COP15. “Com o nosso apetite infindável pelo crescimento económico sem limites e desigual, a humanidade tornou-se uma arma de extinção em massa. Estamos a tratar a natureza como uma casa de banho. E, no fundo, a cometer suicídio através das nossas acções”, alertou.
“A perda da natureza e da biodiversidade é um elevado custo humano. Um custo que medimos em empregos, fome, doenças e mortes. Um custo que se estima que até 2030 será de três biliões de dólares devido à degradação dos ecossistemas. Um custo que se pode medir em preços mais elevados pela água, pelos alimentos, pela energia”, afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, apelando ao sucesso das negociações.
“Somos interdependentes de toda a vida na Terra e a crise da biodiversidade que hoje enfrentamos exige o mesmo nível de esforço e acção que a crise climática. Não há tempo a perder”, acrescentou Guilbeault, exortando os representantes dos países signatários da Convenção da Biodiversidade a porem-se de acordo.
O relatório bianual Living Planet (Planeta Vivo) da organização ambientalista WWF deste ano calculou que “há um declínio de 69% na abundância relativa de populações de vida selvagem monitorizadas entre 1970 e 2018”, salientou Elizabeth Maruma Mrema. “É só um pouco mais do que o tempo da minha vida”, salientou, noutra conferência de imprensa online, Bernadette Fischler Hooper, da WWF no Reino Unido, onde a organização ambientalista apresentou a sua leitura do documento que será alvo de negociações na COP15.
“Viver em harmonia com a natureza”
A estrutura do documento em questão tem quatro metas de longo prazo para 2050. “O lema para 2050 é ‘viver em harmonia com a natureza’, que é quase uma mudança de paradigma. Promover a conservação da natureza por e para as pessoas”, explicou Francisco Ferreira, da Zero, num encontro com jornalistas a propósito da COP15.
As quatro metas, explicadas pela Zero em comunicado, passam por assegurar a integridade dos ecossistemas, aumentando a sua área em pelo menos 15%; valorizar as contribuições da natureza para as pessoas através da conservação e uso sustentável dos ecossistemas; garantir que os benefícios da utilização dos recursos genéticos são partilhados de forma justa e equitativa; e ultrapassar a lacuna entre os meios financeiros disponíveis e os que se calcula serem necessários para alcançar a visão para a salvaguarda da biodiversidade em 2050.
Para 2030, no entanto, prevêem-se 22 marcos, que permitirão avaliar o progresso em direcção às metas de 2050 – consoante sejam mais ou menos cumpridos a nível global.
Destacam-se ideias como assegurar que naquela data, pelo menos 30% das áreas terrestres e marítimas mais importantes em termos de conservação da natureza são classificadas como áreas protegidas; garantir que pelo menos 20% dos ecossistemas degradados estejam em restauração; minimizar o impacto das alterações climáticas na biodiversidade; ou integrar totalmente os valores da biodiversidade em políticas, regulamentos, planeamento, processos de desenvolvimento, estratégias de redução da pobreza, contas e avaliações de impactos ambientais em todos os níveis de governo e em todos os sectores da economia.
“A perda de biodiversidade tem um custo que não se mede em dólares, mas em vidas perdidas”, avisou Inger Andersen, directora executiva do Programa das Nações Unidas para o Ambiente. “A COP15 é a nossa oportunidade de começar a proteger e a reparar a rede da vida”, afirmou.
Os apelos a que os países ultrapassem as suas diferenças e cheguem a acordo multiplicam-se. “As próximas duas semanas não serão fáceis, pode haver vários pontos difíceis de resolver, mas teremos de reconciliar posições diferentes. Mas temos todos uma profunda ligação à natureza, da qual depende a nossa vida neste planeta”, disse ainda o ministro Steven Guilbeault.
O “calcanhar de Aquiles” do financiamento e as "batatas quentes"
“Precisamos de um acordo que trave e reverta a perda de biodiversidade. Mas será que o vamos ter?”, interrogou Bernadette Fischler Hooper, da WWF no Reino Unido, numa conferência de imprensa online. “Os líderes mundiais já fizeram várias declarações em que dizem apoiar estes objectivos. Mas aqui em Montreal vemos que alguns países ainda estão hesitantes”, afirmou, num comentário ao documento que vai estar em discussão na COP15.
Há várias “batatas quentes”, como disse Bernadette Fischler Hooper. Uma delas tem a ver com o desejo de aumentar e tornar “mais justa e equitativa” a partilha de benefícios dos recursos genéticos da biodiversidade, nomeadamente com os povos indígenas ou detentores de conhecimentos tradicionais. “Há algum progresso no documento, mas não foi proposto ainda nenhum mecanismo para a partilha dos benefícios. É preciso haver acordo sobre como se fará e como será posto em prática”, salientou Vishaish Uppal, da WWF Índia.
Estima-se que o buraco nas estimativas entre o financiamento que seria necessário para acções de protecção da biodiversidade e o dinheiro realmente disponível seja de 700 mil milhões de dólares anuais, como recordou Elizabeth Maruma Mrema, apelando ao envolvimento não só do sector público como da filantropia e empresas.
Mas além de ser necessário garantir fluxos de financiamento, outro campo de batalha é reduzir, transformar, dirigir para outras áreas os muitos subsídios e apoios a actividades económicas que têm efeitos nocivos sobre a biodiversidade. “Calcula-se que o montante global destes apoios, pagos tanto pelo sector público como privados, seja no valor de 2,6 biliões de dólares, a nível global”, disse Francisco Ferreira.
A discussão sobre o aumento do financiamento e reduzir os subsídios nocivos pode bem ser ser o “calcanhar de Aquiles” desta COP15, comentou Floran Titze, conselheiro para a política internacional de biodiversidade da WWF. “Nunca seremos capazes de pôr em prática um acordo para um novo Quadro Global da Biodiversidade ambicioso se não houver financiamento suficiente. Precisamos de mais diálogo sobre isto, e nos últimos dias não se viu uma dinâmica positiva”, disse.