Natália Nunes: “Vamos ter de nos preparar para um ano de muitas dificuldades”
A coordenadora do Gabinete de Protecção Financeira da Deco, associação de defesa do consumidor, antecipa que o ano de 2023 será “uma incógnita”.
Na Hora de Verdade desta semana, o PÚBLICO e a Renascença entrevistam Natália Nunes, coordenadora da Gabinete de Protecção Financeira (GPF) da Deco, associação de defesa do consumidor. Numa altura em que as famílias são confrontadas com uma inflação de 10,2%, a que se juntam as subidas recordes das taxas de juro, a jurista sabe que o pior ainda está para vir. E a situação já está a mudar. Se no primeiro semestre deste ano “eram essencialmente as famílias de menores rendimentos que pediam ajuda” à Deco, “a partir de Setembro/Outubro” tem-se verificado “um aumento do rendimento médio das famílias” que recorrem à associação.
Natália Nunes considera ainda “insuficiente” a intenção do Governo de obrigar a banca a renegociar os créditos à habitação quando os juros subam acima dos testes de stress feitos às famílias. No debate do Orçamento do Estado, o primeiro-ministro anunciou que a medida será aprovada no Conselho de Ministros esta quinta-feira.
Até Setembro deste ano, a Deco recebeu 20.036 pedidos de ajuda e de informação. Como é que evoluíram entretanto estes números?
Continuaram a aumentar, e aquilo que nós verificamos é que, se até início de Setembro eram as famílias com mais baixos rendimentos que estavam a ser afectadas pelo aumento da factura do supermercado, da electricidade e do gás, a partir de Setembro começámos a ter mais pedidos de ajuda também destas famílias, mas sobretudo de famílias que tinham um crédito à habitação. A maior parte das famílias tem um crédito à habitação com taxa variável indexada à Euribor a seis meses, isso significa que de seis em seis meses a prestação vai ser revista. E estamos numa fase em que as próximas revisões hão-de ser de aumento e as famílias já começam e perceber isso.
Qual é perfil de quem pede ajuda e apoio à Deco? São pessoas da classe média, classe média-baixa, já é transversal?
No primeiro semestre deste ano, eram essencialmente as famílias de menores rendimentos. A partir de Setembro/Outubro, nós vimos, inclusivamente, um aumento do rendimento médio da família que nos pediu ajuda. Se até ao início de Setembro eram famílias que tinham à volta dos 1000 euros de rendimento líquido mensal, em Setembro e Outubro já se aproxima dos 1500 euros. Isto mostra que também o perfil, em termos de rendimentos, está a aumentar. Se no início do ano foi muito a questão da inflação que levou as famílias a terem dificuldades, o que vemos nestes últimos tempos é que é o aumento da prestação do crédito à habitação.
E há muitos casos de vários créditos, como noutras alturas?
Sim. Olhando para a média dos créditos das famílias que nos pedem ajuda, verificamos que, em regra, são cinco: há o crédito à habitação, que é aquele que tem maior peso em termos de volume, de montante; depois temos dois créditos pessoais e dois cartões de crédito. É o somatório de todas estas prestações que acaba por ditar as taxas de esforço das famílias, que andam a rondar os 70%, pelo menos das que nos pedem ajuda. Por outro lado, nós não nos devemos surpreender pelo número de créditos que as famílias têm, porque muitas vezes, quando elas contrataram o próprio crédito à habitação, para baixar o valor do spread, foi-lhes aconselhado pela instituição de crédito que celebrassem um crédito pessoal e contratassem cartões de crédito. Muitas vezes, aquilo que as famílias têm ainda hoje são aqueles créditos que contrataram aquando da celebração do crédito à habitação.
Espera um cenário muito diferente do de 2008?
Em termos de evolução, eu diria que são situações diferentes. A Euribor está a subir muito mais rápido do que subiu em 2008 e isso é algo que não era expectável. Por outro lado, temos uma inflação que, de acordo com os últimos dados, já está nos dois dígitos. Em 2008, não tínhamos estes níveis de inflação — é verdade que tínhamos um desemprego muito superior.
O Governo prepara-se para apertar a malha à banca, obrigando-a a renegociar certos créditos. Isso foi prometido no debate do Orçamento pelo primeiro-ministro. Vai chegar para as famílias conseguirem responder à subida das taxas de juro?
Na opinião da Deco, poderá não ser suficiente porque também temos algumas dúvidas sobre se todas as famílias, mesmo reestruturando os créditos, acabam por conseguir cumprir [os pagamentos]. As nossas reservas têm muito que ver com créditos que já estão contratados no limite, por exemplo, créditos com a duração de 50 anos, em que a idade das pessoas já vai até aos 80 anos — e nós sabemos que existe uma grande fatia destes créditos nesta situação — ou famílias com taxas de esforço muito elevadas. Temos muitas dúvidas e algumas reservas de que, mesmo reestruturando estes créditos, as famílias os consigam suportar. Daí entendermos que uma das soluções poderia passar por uma linha de financiamento semelhante àquela que houve em 2009, dirigida às famílias confrontadas com um aumento significativo da sua taxa de esforço por via do aumento da Euribor. Durante um espaço de tempo, o Estado suportaria parte da prestação.
A Deco tem contas feitas sobre esta linha de financiamento que propõe, uma média que possa ser atingida?
Não. Nós olhámos para a experiência de 2009 e pareceu-nos, atendendo à situação que estamos a viver e de forma a não prejudicar as partes, nomeadamente os consumidores e a própria banca, que a existência de uma linha de financiamento seria uma boa solução. Até porque nos últimos dias ouvimos a banca dizer aos consumidores que, em caso de renegociação, devem ter atenção, porque depois vão ficar com a informação cinzenta, para não dizer negativa, no seu mapa das responsabilidades de crédito do Banco de Portugal.
Ou seja, cadastro?
Cadastro, exactamente, porque todos nós temos, desde que tenhamos acesso a crédito, informação no Banco de Portugal — pode ser positiva ou negativa. Se renegociarmos e se renegociarmos devido a dificuldades financeiras, essa informação vai figurar no mapa de responsabilidades e, portanto, sempre que nós formos a um banco pedir um qualquer crédito, ele vai consultar esta informação e podemos não ter acesso ao crédito ou tê-lo com valores elevados.
A Deco já se reuniu com algum elemento do Governo desde que o cenário começou a agravar-se?
Nós enviámos uma “carta-lobby"com a nossa perspectiva sobre o que está a acontecer e com algumas medidas que achamos que deveriam ser tomadas para ajudar as famílias neste momento.
Quer concretizar alguma proposta da carta?
Aquilo que nós temos vindo a reivindicar é que a reestruturação do crédito à habitação seja feita de forma mais ágil. Eu não gostaria de dizer obrigatória porque tenho dificuldades em assumir que ela seja obrigatória para todas as situações, mas pelo menos que a banca fosse obrigada a justificar sempre que não é feita a reestruturação do crédito à habitação. Por outro lado, além da reestruturação do crédito à habitação, há a questão da linha de financiamento. Estas duas medidas para nós não são únicas, claro, mas seriam fundamentais.
E qual é que foi a resposta? Já tiveram resposta?
Não tivemos resposta.
O líder parlamentar do PSD, Joaquim Miranda Sarmento, ainda esta semana defendeu o aumento das taxas de juro e a política do Banco Central Europeu como parte da solução de combate à inflação. Como é que isto ajuda as pessoas e como é que vê esta mensagem que está a ser passada pelo poder político e o maior partido da oposição?
Eu não queria muito entrar na questão política. Aquilo que lhe posso dizer é que me parece que todos temos a obrigação de ajudar as famílias que estão confrontadas com o aumento do custo de vida e principalmente as mais vulneráveis. Por outro lado, em relação ao aumento do crédito à habitação relativamente às famílias, elas também têm de estar muito conscientes e penso que, nesse sentido, há um trabalho que tem de ser feito por todos, por nós, Deco, pelo Banco de Portugal, pela própria banca, que é o de sensibilizar, informar muito as famílias do que significa estarem a contratar crédito à habitação com taxas variáveis, têm de estar cientes do que isso significa, dos riscos que estão a correr. Agora também parece que existe aqui todo um trabalho, eventualmente do Banco de Portugal, relativamente a promover que a banca apresente soluções aos consumidores que possam passar por taxas fixas, por exemplo, e por explicar de forma muito evidente aos consumidores, no momento da contratação, a diferença entre uma a outra e os riscos que correm entre estarem a contratar uma taxa fixa ou uma taxa variável.
Esse problema com a taxa fixa diria que é um problema dos bancos, das famílias, das famílias que não usam porque não sabem ou dos bancos que não têm interesse em que a taxa fixa seja usada?
É dos dois, porque se as famílias também conhecessem e tivessem uma grande informação relativamente às vantagens e pudessem colocar no prato da balança a taxa fixa e a taxa variável, possivelmente haveria mais a optar pela taxa fixa. Nós temos um exemplo em Espanha, que estava numa situação mais ou menos semelhante à nossa, em que a maior parte do crédito à habitação era com taxa variável, e hoje nós vemos que mais de 60% já é com taxa fixa. Nada impede que em Portugal não aconteça o mesmo.
Nas últimas crises, o anterior presidente do BCE, Mario Draghi, conseguiu segurar as taxas de juro, coisa que com Christine Lagarde é completamente diferente. O poder político europeu, e até português, deveria fazer força para que a política europeia também fosse outra? A mensagem que Portugal passa para o BCE poderia ser outra?
Falando em nome de quem está todos os dias a apoiar as famílias, claro que seria desejável que assim fosse, mas também seria desejável que nós não tivéssemos estes níveis de inflação. E a verdade é que se espera que toda esta estratégia que está a ser adoptada pelo BCE venha a dar o resultado no sentido de diminuir o valor da inflação. Não está a ser tão rápido como todos esperávamos ou como era desejável. Se me perguntar se estas medidas do BCE vão dar ou não os resultados que seriam desejáveis, não sabemos.
2023 é uma incógnita?
É uma incógnita a todos os níveis.
É esperar o melhor e preparar para o pior?
Nós, as famílias de uma forma geral (e principalmente as famílias de menores rendimentos, com taxas de esforço elevadas) temos mesmo de nos preparar para um ano de muitas dificuldades, até porque a inflação vai continuar elevada, além dos 2%, que é o desejável. E, por outro lado, também se perspectiva que a Euribor vá subir, e já se fala que vai ultrapassar os 3% durante o próximo ano. Isto são sinais muito complicados para as famílias. Se o Estado português deveria fazer alguma coisa? Eu diria que não deveria, tem mesmo de fazer alguma coisa em termos internos, que é aquilo que o Governo controla e pode efectivamente fazer. E claro que em termos de diplomacia, em termos europeus, também tem de salvaguardar os interesses das famílias portuguesas.