Rafah: a história de um genocídio

Quando em 1948 lançámos para fora a incapacidade histórica europeia de lidar com um povo, então condenámos outro, aparentemente mais distante, à sua longa e miserável destruição.

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Um adolescente carrega o corpo de uma criança palestiniana morta num ataque israelita, durante um funeral em Rafah, no sul da Faixa de Gaza Hatem Khaled / REUTERS
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Israel avançou sobre Rafah e se em alguns ainda permanecia a dúvida sobre como designar a ofensiva israelita sobre Gaza, por este genocídio não se assemelhar à morte sistemática à qual estamos infelizmente acostumados desde o nacional-socialismo alemão, qualquer definição de um avanço que tem em vista a destruição material e humana de um povo não pode possuir qualquer outro nome. A culpa alemã e os interesses geopolíticos norte-americanos não podem mais extravasar para o resto da Europa, especialmente quando falamos de sionismo, não de Judaísmo. Quando em 1948 lançámos para fora a incapacidade histórica europeia de lidar com um povo, então condenámos outro, aparentemente mais distante, à sua longa e miserável destruição.

Na verdade, o fundamentalismo sionista aproxima-se mais do próprio nacional-socialismo do que qualquer outra coisa. O primeiro grande texto sionista, publicado em Inglaterra no final do século XIX, "O Estado Judeu", de Theodor Herzl, tem muitos pontos em comum com o conceito de "Lebensraum" (espaço-vital) do geógrafo Frierich Ratzel, mais tarde apropriado pela Alemanha nazi para justificar a sua expansão. Curiosamente, ambos os termos emergiram pela mesma altura, e ambos pugnam por aquilo que é o espaço territorial necessário para a proliferação de um povo, ainda que para tal seja necessário atropelar a existência de outros povos já estabelecidos.

Desde as primeiras expansões israelitas, com a Nakba de 1948, a ideia da dizimação completa do povo palestiniano e das condições que tornam possíveis a sua existência ficaram rapidamente vincadas. O fundamentalismo religioso israelita levou até à contaminação das fontes de água nos territórios ocupados, para que os refugiados das zonas ocupadas não mais voltassem. A demolição de mesquitas e a substituição destas por sinagogas; a hebraização das localidades ocupadas até nos nomes dados; até à mais recentemente dependência de Israel pelos palestinos no que toca a emprego, em que quase 25% da população trabalha em construção na expansão colonial, denotada pelas Nações Unidas do povo palestiniano; até às valas com 400 palestinianos, grande parte desses mulheres e crianças, enterrados vivos; o que se observa aqui não poderá ter outro nome senão genocídio.

A destruição vindoura de Rafah não é senão um novo passo na longa história de devastação israelita e o fracasso da criação e gestão de Israel. Desde os acordos de Oslo em 1993 que previam uma certa autonomia palestiniana, nada mudou. A expansão continua, as guerras, a miséria, o genocídio. Os próprios acordos previam autonomia apenas sob a condição da entrega de poderes administrativos às forças de segurança israelitas, no que toca a habitação, movimento, educação, acesso a bens materiais em geral. A segregação e entrega dos poderes administrativos a forças de segurança externas só pode ter um nome: apartheid. E em muito, esta reclusão da Palestina em Gaza, novamente lembra os guetos criados pelo nazismo na Alemanha e na Polónia.

A Ocidente, nos Estados Unidos, o grande financiador do Estado israelita, as manifestações estudantis solidárias nos campus universitários são atacadas pela polícia, em muitas ocasiões atendidas com casos de brutalidade policial. Aqui na Europa, mais pacífica, também pelas nossas posições crescentemente (ainda que insuficientemente) mais favoráveis ao reconhecimento da Palestina, o silêncio institucional é a norma. A condenação branda, a censura limitada das acções israelitas e a não-manifestação estatal de apoio permanecem as mesmas. Enquanto a União Europeia continua a agitar a bandeira da culpa alemã sobre todos nós, cegos à futura culpa Ocidental perante o genocídio causado pelo fracasso da criação ocidental de Israel.

Assim, ainda que a capacidade para travar Israel pareça estar completamente do lado dos Estados Unidos, não podemos deixar de participar nas manifestações vocais de solidariedade para com o povo palestiniano, como a do próximo dia 11 de Maio. Ainda que nós, na Europa, por fraca mão e capacidade de influência social, económica e política sobre Bibi e o ultranacionalismo fanático do governo israelita (e evidentemente apenas os Estados Unidos possuem qualquer forma de poder sobre Israel, ainda que evidente ou propositadamente insuficiente), não consigamos efectivamente impedir esta longa história de lenta eliminação de um povo, teremos ao menos de exigir dos nossos meios a designação correcta: genocídio.

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