A Europa (ainda) é um ensaio

Contra os piores prognósticos, a Europa atravessou várias crises, até algumas que foram entendidas como existenciais, sobrevivendo e delas saindo reforçada.

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A União Europeia é uma promessa de paz que se materializou. É um ente político que se avivou com a passagem do tempo, com os desafios e os contratempos que enfrentou. Temos na Europa uma promessa contínua de se tornar algo mais para não ficarmos desorientados e à mercê de infortúnios que enfraquecem a nossa capacidade de reação.

No ano em que se completa meio século de democracia em Portugal, não se levantam as mesmas bandeiras, nem se encenam festividades semelhantes, por a primeira Comunidade Europeia completar 72 anos. A cabalística (72 não é um número redondo e celebrável como 50) não explica tudo. A comparação anterior pretende situar a integração europeia ao mesmo nível da revolução que inaugurou a democracia em Portugal? Ensaio uma interpretação heterodoxa: muito embora em abril de 1974 estivéssemos longe de sonhar com a civilização europeia que despontava, a entrada nas Comunidades Europeias foi uma revolução com horizonte temporal distante que ofereceu os alicerces de que a democracia infante precisava. Sem a adesão às (então) Comunidades Europeias, as dores de crescimento da democracia poderiam ter maiores e mais prolongadas.

Como portugueses, temos legitimidade para instrumentalizar a UE. Que atire a primeira pedra o país que pertence à UE que não o faça. Nem o mais euro-optimista pode negar que o projeto da Europa unida só fez o seu caminho porque os países membros dele recolheram vantagens. Não me interessa estimar os ganhos (e, já agora, as perdas) por Portugal integrar a Europa unida. No dia da comemoração da União Europeia, o que importa é uma tarefa ambivalente: explicar por que a ideia de Europa unida foi uma boa ideia, evitando lugares-comuns e a complexa linguagem dos peritos sobre Estudos Europeus (e que tende a assustar o cidadão, afastando-o da Europa que se assemelha a uma torre de Babel). Proponho um apanhado de ideias sobre o que esta Europa é e o que não é.

A Europa é um lugar de coexistência pacífica. Um legado de paz deixado em memória futura às gerações que, entretanto, vão cultivando algum desconhecimento sobre a História recente do continente. Mergulhar nas raízes desta Europa unida é uma mnemónica para o futuro.

A Europa é uma casa comum que perfilha valores humanistas, uma vanguarda que se estabelece em domínios vários sem o pretensiosismo de um neocolonialismo disfarçado na voz de um “exemplo a seguir”. Mandatar a Europa para ser exemplo pode sitiar a liberdade dos outros. Uma Europa que anime uma liberdade condicionada é uma Europa que nega os seus valores.

A Europa é um lugar onde a defesa da concorrência tem vindo a abater monopólios que aglomeravam a riqueza contra os interesses da maioria dos consumidores. Está é uma medida de democraticidade do bem-estar que costuma escapar ao radar das análises.

Na Europa convergem interesses dos países que a reconheceram como porta-voz com uma dimensão capaz de ser ouvida no plano internacional, evitando a decadência pressentida após o fim da Segunda Guerra Mundial. É um anão político e militar, mas vai fazendo o seu caminho feito de pequenos passos, como sempre aconteceu na construção europeia.

A Europa é um santuário do Estado social, na confluência de inspirações ideológicas que se complementam num híbrido singular. Em tempos de polarização e afirmação eleitoral de populismos de diferentes linhagens, a Europa situa-se num radicalismo de centro que tem a tolerância e o respeito pelos outros como valores matriciais.

Contra os piores prognósticos, a Europa atravessou várias crises, até algumas que foram entendidas como existenciais, sobrevivendo e saindo reforçada. Há até quem sugira que sem crises a Europa não teria chegado ao patamar de crescimento a que chegou.

Mas a Europa não é um Estado, nem aspira a sê-lo. O medo dos que não desistem de exorcizar o federalismo como devir da UE não é tangível. A Europa não hipotecou a soberania dos países europeus, para sossego dos que avivam a descaracterização da soberania nacional por ação da corrupção ditada pela União. Se a UE não dispõe de soberania, os Estados-membros não podem perder soberania a seu favor.

Para apaziguamento dos cultores dos nacionalismos identitários, não se concebe uma identidade europeia que se sobreponha às identidades nacionais. Para os que ignoram os fundamentos e a História da UE, “unidade na diversidade” sempre foi o lema desta Europa politicamente original. Para sossegar os arcaicos que ainda vivem nos contrafortes de um tempo que teve o seu tempo, termos mais Europa não significa que deixemos de entoar o hino nacional ou que a bandeira seja atirada para um estatuto subalterno. A Europa onde vivemos não é a Europa dantesca que serve os propósitos dos que exaltam a pertença nacional e desdenham os outros, como não serve os desejos daqueles que correm atrás de miragens ideológicas datadas. Ser Europa hoje não é congeminar os Estados Unidos da Europa.

A União Europeia é uma casa comum, a casa europeia onde os países conseguiram coexistir desvalorizando as diferenças. Aceitam que essas diferenças – o seu reconhecimento, a tolerância perante elas e os esforços para encontrar uma síntese que ultrapasse as divergências – é parte do seu património comum. Um português não será um finlandês, mas senta-se à mesa da governação europeia para, em conjunto com os outros Estados-membros, dar um contributo para resolver os problemas que a modernidade faz escapar da alçada de cada país. Esta é uma casa comum que defenestrou os fantasmas não tão distantes como se possa pensar, para sermos um lugar-comum onde as diferenças são excedidas.

A virtude maior desta Europa é ser um projeto inacabado. Um projeto em contínua construção, aberto às vozes que queiram ser artesãs de uma construção em aberto. Não podemos silenciar essa que é a nossa voz. Não podemos ser europeus ser conhecermos a Europa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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