Costa no Conselho Europeu: obsessão-ilusão

Condensa o melhor de nós: é alguém que tanto freta um Falcon 50 para ir ver a final da Liga Europa com Orbán, como se senta com Macron no Eliseu para criar alianças contra a extrema-direita.

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Doutrina Barroso: No verão de 2004, quando Durão Barroso se demite de primeiro-ministro e parte para a presidência da Comissão Europeia, cria-se uma tradição no país. Doravante, os nossos representantes devem assumir cargos internacionais de prestigiado valor, real ou simbólico, para nos sentirmos bem enquanto portugueses. A seguir a Barroso, foi Vítor Gaspar no FMI (2014), António Guterres na ONU (2017), Mónica Ferro no Fundo das Nações Unidas para a População (2017), Mário Centeno no Eurogrupo (2018), António Vitorino na Organização Internacional para as Migrações (2018) e Jorge Jesus no Al-Hilal (2023). À exceção deste nosso recordista do Guinness, meu homónimo, há muito que não temos um novo português a assumir um cargo internacional de destaque. Esta falta, comprometedora do nosso prestígio nacional, levou o Presidente da República a invocar a doutrina Barroso. Ao comentar os desenvolvimentos da Operação Influencer, atirou: “[Agora] é mais provável haver um português no Conselho Europeu”.

Partilho do entusiasmo. De que nos vale um primeiro-ministro num governo de maioria absoluta se podemos tê-lo em Bruxelas a reunir-se duas vezes por semestre?

Um cargo muito (pouco) importante. O alto cargo mais recente que a UE criou, o de presidente permanente do Conselho Europeu, existe apenas desde 2009 e os poderes que lhe correspondem são vagos e escassos, nas palavras do seu primeiro titular, o belga Herman Van Rompuy. A principal missão é presidir e mediar reuniões entre chefes de Estado e de governo, não tendo iniciativa legislativa, não negociando nem adotando leis. No caso da UE, uma fábrica de fazer leis, isto pode ser um enfado. É por isso que o perfil para este lugar é, no geral, associado a políticos mais experientes, sem ambições, ex-primeiros-ministros com flexibilidade moral, neutros e discretos que não se sobreponham aos líderes dos 27. O presidente do Conselho seria, idealmente, alguém com o carisma ao nível de uma mopa molhada, como o eurocético britânico Nigel Farage chamou a Van Rompuy, em 2010, num debate amistoso no Parlamento Europeu (PE).

O melhor exemplo de como este cardápio parece sedutor foi o modo como o próprio atual presidente do Conselho, Charles Michel, tentou abandonar o cargo em janeiro passado para ser eleito eurodeputado – 1 em 720.

Costa, o nosso candidato e deles também. Após uma cimeira da NATO em Bruxelas, em 2022, Joe Biden troçava de Michel, parabenizando-o pela reeleição para um cargo para o qual não havia oposição. António Costa, parece ir pelo mesmo caminho. Os poucos nomes disponíveis do lado dos socialistas europeus parecem não se encaixar: Enrico Letta (pouca experiência como primeiro-ministro), Frans Timmermans (derrota eleitoral recente e nunca foi primeiro-ministro), Mario Draghi (sem filiação partidária), Mette Frederiksen (jovem e demasiadamente assertiva em questões migratórias), Pedro Sanchéz (jovem, com ambições e vindo de um escândalo) e Sanna Marin (muito jovem e disruptiva). As suspeitas em torno de Costa também não parecem ter feito mossa suficiente em Bruxelas. Continua a granjear da admiração dos seus pares, em particular do chanceler alemão, por conta dos seus famigerados talentos pessoais – dialogante, bom negociador, com flexibilidade ideológica e na reta final da sua carreira política ativa. Além disso, não seria o primeiro político a assumir um lugar de topo em Bruxelas mesmo com suspeitas a pairar sobre si. Jean-Claude Juncker e Ursula von der Leyen foram eleitos presidentes da Comissão após suspeitas várias nos seus países.

As próprias intenções dos socialistas europeus para esta legislatura parecem à medida de Costa. Com o muito provável arrecadar do segundo lugar nas europeias, os socialistas, após dois mandatos consecutivos com o Alto Representante, deverão querer, pela primeira vez, a presidência do Conselho. Vêem-na como uma forma de combater mais assertivamente o crescimento das políticas da direita radical e eurocética no Conselho da UE, no PE e na Comissão.

Diz-se que quem entra papa sai cardeal, mas nós não perdemos um primeiro-ministro com maioria absoluta para não nos podermos vangloriar da sua existência internacional. É preciso mostrar como Costa condensa o melhor de nós: é alguém que tanto freta um Falcon 50 da Força Aérea para ver a final da Liga Europa com Viktor Orbán, como se senta com Macron no Palácio do Eliseu para criar alianças contra a extrema-direita. Independentemente da (falta de) razão do Ministério Público, da (falta de) estabilidade governativa do país ou da (ir)relevância do cargo, o que importa é sonho. E o sonho, como diz o poema de Gedeão, esse comanda a vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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