Escolas anseiam por tréguas curriculares

Não é que seja negativo haver mudanças curriculares. A mudança pode ser positiva. A formação também. E a apropriação igualmente. O problema é a frequência e a inconsequência da mudança.

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"A generalização dos currículos leva o seu tempo" Daniel Rocha/Arquivo
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Os currículos frequentemente mudam ao sabor da cor política que está no poder. Cada titular da pasta da Educação deseja fazer prevalecer a sua visão e deixar a sua marca no sistema educativo. Do ponto de vista político, esta opção pode ter a sua legitimidade. Já na perspetiva das escolas, esta questão é bem mais complexa.

Esta bipartidarização curricular faz com que de cada vez que uma força política chega ao Governo coloque em marcha a elaboração de novos currículos, com novas aprendizagens essenciais, novas metas curriculares ou novas como lhes queiramos chamar. Como estes documentos curriculares são, por natureza, demorados de elaborar, geralmente só entram em vigor quando a legislatura já vai a meio.

A generalização dos currículos também leva o seu tempo, uma vez que a sequencialidade curricular deve prevalecer, de modo a respeitar a continuidade na introdução dos conteúdos. Por exemplo, um novo currículo pode entrar em vigor num ano letivo para o 1.º ano, no ano seguinte para o 2.º ano e assim sucessivamente. Ou então entrar em vigor primeiro para os 1.º e 3.º anos e, a seguir, para os 2.º e 4.º anos. Enquanto isso, os restantes anos continuam com os currículos anteriores, fazendo com que um ciclo de escolaridade tenha dois currículos diferentes em simultâneo.

Mas há diversas questões que me inquietam nesta bipartidarização curricular. Para começar, esse período de generalização nem sempre chega ao fim de um ciclo de escolaridade, uma vez que, entretanto, os currículos mudam… e tudo volta ao início, com um novo período de generalização faseada e a coexistência de dois currículos em simultâneo, o novo e o antigo. Só que o currículo antigo de antigo não tem nada, pois tinha acabado justamente de entrar em vigor, ainda nem tinha sido generalizado e muito menos avaliado.

Na melhor das hipóteses, mesmo que esse período de generalização chegue ao final do ciclo de escolaridade, não se “perde” tempo com a avaliação da implementação do currículo anterior, pelo que passamos do currículo antigo para o novo, sem a necessária avaliação, para que possam ser tiradas as devidas ilações para o futuro.

Por outro lado, frequentemente os currículos entram em vigor sem que exista um processo de formação massivo que abranja todos os docentes, sendo que, particularmente no caso da Matemática, são introduzidos domínios que não foram contemplados na formação inicial. Muitos docentes procuram adaptar-se, inteirando-se dos novos conteúdos e pesquisando as atividades pedagógicas destinadas a desenvolver as aprendizagens previstas com os alunos. Outros apoiam-se nos manuais escolares, nos recursos digitais disponibilizados pelas editoras e nas atividades divulgadas na Internet. E outros, ainda, assumem uma atitude que corresponde a uma forma de “cinismo” curricular.

Este “cinismo” curricular traduz-se numa descrença na continuidade dos currículos, que conduz a uma indiferença ou, pelo menos, a falta de interesse pelas novas propostas curriculares e a um reduzido investimento na formação contínua direcionada para esse fim. Para quê, se está sempre tudo a mudar? — é o argumento que está na base desta desconfiança.

A mudança de currículos exige, sem dúvida, tempo e investimento a quem os implementa no terreno. Porque não basta conhecer um novo currículo. É necessário apropriar-se do mesmo, traduzindo-o em atividades pedagógicas diversificadas e sequenciais, adequadas ao desenvolvimento dos alunos e com níveis crescentes de complexidade. Mas, quando este objetivo parecia estar em vias de ser alcançado, os currículos mudam… e tudo volta ao princípio, num processo que exige um recomeço.

Não é que seja negativo haver mudanças curriculares. A mudança pode ser positiva. A formação também. E a apropriação igualmente. O problema é a frequência e a inconsequência da mudança. Porque as escolas necessitam de estabilidade para metabolizar os currículos. E os currículos precisam de ser avaliados antes de serem alterados, para que o sistema educativo possa evoluir de forma consistente.

Além de tudo o mais, as escolas têm muitas outras batalhas que necessitam da sua máxima atenção, como o combate ao insucesso escolar, as dificuldades disciplinares, os problemas socioeconómicos do meio envolvente e a chegada ao sistema de ensino de alunos que não dominam o português, só para enumerar alguns dos mais prementes. É por todos esses motivos que, mais do que de alterações contínuas de programas, as escolas anseiam por tréguas curriculares. Durante um tempo, não seria má ideia negociar um pacto educativo para assegurar a estabilidade curricular.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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