Aviso às câmaras municipais: deixem de fazer despejos e demolições ilegais

A Lei de Bases da Habitação refere que, em caso de despejo, os municípios ou outras entidades do Estado estão obrigadas a encaminhar os agregados sem casa para soluções de acesso à habitação.

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O problema da habitação precária nunca foi resolvido no nosso país, devido à falta de políticas de habitação que garantam esta necessidade fundamental a toda a gente. Hoje, o problema agrava-se: aumenta o número de novas barracas, tendas, caravanas e anexos, agrava-se a sobrelotação extrema e são cada vez mais os moradores de rua.

Os preços não param de subir e há uma total falta de alternativas efectivas dignas, e a especulação desenfreada instalou-se nas nossas cidades. O mercado a funcionar – que os senhores da direita querem desenvolver ainda mais – é isto.

Muitas câmaras municipais da Area Metropolitana de Lisboa voltaram a promover, nos últimos tempos, demolições selvagens, com violência policial, expulsando famílias para a rua, sem as encaminhar para qualquer alternativa de habitação, muitas vezes sem sequer apresentarem uma notificação prévia. Quando apresentam, dão prazos para saída de cinco ou seis dias. Refugiam-se na justificação de que é "ilegal", que as pessoas é que não cumprem a lei, culpabilizando-as. Sobre a crise de habitação e a falta de alternativas destas famílias nem uma palavra.

As famílias expulsas são maioritariamente pessoas que trabalham, que saem de manhã e regressam à noite para dormir numa tenda ou numa casa precária construída por si. São estas as soluções de habitação que encontram, perante a ausência de alternativas. São também elas que têm construído as nossas casas e que sustêm as nossas cidades com o seu trabalho, mas não têm salário suficiente para aceder a uma casa digna. Estas famílias também têm filhos e, por vezes, pessoas doentes a cargo. O que as câmaras e o Governo deveriam discutir é a grave situação habitacional em que se encontram. Em vez de acusarem as famílias de construção ilegal, devem ver que são as próprias câmaras que não cumprem a lei.

Por isso, vale a pena relembrar às autarquias a lei em vigor e o acumulado de lutas que se travaram durante anos e que deram origem a pareceres de instituições a que o Estado português está vinculado:

Em 2016, o provedor de Justiça fez um parecer sobre as demolições e despejos que aconteciam de forma violenta na Amadora, recomendando, independentemente de qualquer recenseamento existente (e sempre desatualizado), a "suspensão das demolições e dos despejos, até que o município, o Estado e eventualmente outras instituições estivessem em condições de realojar todos os agregados familiares que não dispusessem de alternativa habitacional". José de Faria Costa baseou-se na "Constituição [que] incumbiu o Estado de desempenhar as tarefas necessárias para assegurar a cada cidadão a dignidade social através da adoção de políticas públicas socialmente ativas que se concretizam pela criação de pressupostos materiais para a realização da democracia social e económica" e que declarou que "todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar".

Refere também a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos do Humanos, e reforça que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Humanos reconhece “um conjunto de prerrogativas negativas relacionadas com o seu acesso [à habitação], a sua ocupação, a sua não destruição e a não expulsão dos seus ocupantes”. Refere ainda “o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas [que] contém um fundamento significativo do direito a uma habitação condigna no conjunto dos princípios jurídicos que constituem o direito internacional dos direitos humanos (n.º 1 do seu artigo 11.º)”.

Também a Relatora Especial das Nações Unidas para o Direito à Habitação Adequada, no relatório que apresentou ao governo aquando a sua visita a Portugal, em 2017 incluiu nas suas recomendações, baseando-se em vários pactos ratificados pelo nosso país, que o Estado deve: "prevenir demolições e despejos que resultem em falta de habitação (…) [e que] os planos para as comunidades desfavorecidas devem ser desenvolvidos e implementados em consulta com as populações afectadas e devem incluir princípios fundamentais dos direitos humanos, como a segurança da posse, a relocalização in situ, o acesso a serviços básicos, incluindo água, saneamento e eletricidade, a acessibilidade dos preços e condições de vida dignas".

Há quem considere que os direitos referidos são de natureza programática e não vinculam o Estado. Esta é uma interpretação enviesada e parcial da concepção dos direitos e de uma determinada hierarquia que deveria ser questionada. Ao fim de 50 anos de Estado democrático, os direitos sociais fundamentais não podem continuar a ser programáticos, têm de ser efectivos e garantidos pelos Estados através das suas opções de políticas públicas.

No seguimento destes pareceres, e, sobretudo, de lutas muito duras e prolongadas dos moradores dos bairros de Santa Filomena e 6 de Maio, na Amadora, entre outros, o Parlamento fez um caminho, aprovando, em 2019, a Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83/2019), que refere que, em caso de despejo, os municípios ou outras entidades do Estado estão obrigadas a encaminhar os agregados com efectiva carência habitacional para soluções de acesso à habitação.

No entanto, varias autarquias da Área Metropolitana de Lisboa voltam a avançar com demolições e despejos sem qualquer alternativa, enquanto participam nas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril. Será que não compreendem a incompatibilidade entre as práticas? Além de desrespeitarem a lei, demonstram enorme desrespeito pela pessoa humana e pela democracia. O tratamento desumano e indigno, além de ilegal, reforça narrativas e práticas que nenhuma empatia têm com a situação vulnerável que as pessoas enfrentam. A culpabilização das vítimas que promovem alimenta discursos de ódio, típicos da extrema-direita. Fica o aviso às câmaras municipais: deixem de fazer demolições, despejos e expulsões, respeitem as leis que defendem a dignidade humana e, com o Governo, desenvolvam uma verdadeira política que garanta habitação digna a toda a gente que honre a nossa revolução e quem por ela lutou.

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