O mito do combate às desigualdades

A destreza de mexer no telemóvel de procurar musica e vídeos e fazer “tic tocs” não é de todo transponível para o mundo do conhecimento.

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"As desigualdades podem ser diminuídas, mas nunca resolvidas" Daniel Rocha/Arquivo
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Num artigo recente da autoria do professor David Justino, publicado no Jornal de Letras, na secção de Educação, li uma expressão que me ficou na memória e da qual aqui vos dou conta. O parágrafo que então li dizia respeito à degradação da qualidade do ensino e da aprendizagem nas nossas escolas.

Por muito que o desenvolvimento de competências seja importante para que estas possam ser mobilizadas de forma consciente para outras situações, a perda da aprendizagem do conhecimento veio trazer a ideia de que o conhecimento está acessível a todos e a qualquer hora. O que, do ponto de vista imediato, numa primeira linha, até pode ser verdade, mas não o é quando queremos uma reflexão, uma problematização desse mesmo conhecimento, certamente adequado a cada nível de escolaridade e que se quer também, etário. O acesso ao conhecimento é pouco, é pobre e não nos devemos satisfazer por os nossos alunos saberem aceder ao conhecimento, o que na realidade a maioria não sabe, pois a sua literacia digital, do ponto de vista da pesquisa e da validação das fontes é muito ténue.

A destreza de mexer no telemóvel de procurar musica e vídeos e fazer tic tocs não é de todo transponível para o mundo do conhecimento. O conhecimento para ser apreendido requer consciencialização, procura de autores que já tenham reflectido sobre o assunto, ler, exercitar, problematizar para conseguir justificar. O mesmo acontece com a escola, não é por a escola ser acessível a todos que todos saem escolarizados, educados, formados, cidadãos mais conscientes. Não é o acesso que nos transforma, mas o que fazemos com essa oportunidade ou possibilidade.

A outra ideia que actualmente passa é que para aprender não é preciso esforço. Basta o suficiente, depois quando precisar, se precisar, então invisto mais. Não se pode infligir esforço aos alunos, nem pedir um comportamento adequado na sala de aula, memorizar não faz parte da equação e ouvir o que os professores dizem, só mesmo quando precisar de realizar o trabalho que me estão a pedir. As mais elementares regras de civilidade, de respeito, de socialização estão degradadas. E depois vem aquilo a que o professor David Justino chama de "o mito do combate às desigualdades escolares", que no embalo do que antes referi toma conta da degradação da qualidade de ensino e da aprendizagem.

As desigualdades não terminarão com a escola, ou seja, não é a escola que sozinha vai resolver o problema das desigualdades escolares, mas antes um mecanismo articulado entre educação, sociedade, entenda-se emprego e habitação, economia e cultura. A escola só por si não vai suprir os poucos hábitos de leitura e de acesso à cultura se às famílias não lhes for permitido pensar em algo mais que não seja a sua sobrevivência, ou seja, a satisfação das necessidades básicas, tal como ilustra a pirâmide de Maslow.

Não é a escola por si que combate as desigualdades escolares, até porque já não é vista como um imediato elevador social. A maioria das profissões que depende de estudos ou de um curso superior não são, na generalidade, pagas de forma elevadamente díspar de muitas outras que não requerem este tipo de investimento. A não-correspondência entre estudar, ter uma boa oportunidade de trabalho, um emprego bem remunerado e uma vida onde as preocupações sejam de outra ordem que não as da sobrevivência, leva a que um largo número de famílias não insista na qualidade do sucesso escolar.

O gosto por uma profissão, que não é remunerada à altura mais do que é necessário, não serve como opção. As desigualdades combatem-se com empregos bem remunerados, habitação condigna, promoção do acesso à cultura, e valorização da qualidade das aprendizagens. E as desigualdades podem ser diminuídas, mas nunca resolvidas.

O estudo das desigualdades é feito ao longo de todo o século XX. A educação compensatória teve início nos anos 1970 e em Portugal toma o nome de Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, (TEIP). Estamos em fase de candidatura ao TEIP 4, numa "tentativa de impulsionar o sucesso educativo de crianças e jovens socialmente desfavorecidos" (Schmidt, 2015 cit. in Ferraz, Neves & Gil, 2018, p.88).

Como são vistas estas escolas, por quem lá trabalha, por quem as frequenta e pelo cidadão comum? Terá a Educação Compensatória contribuído para a melhoria do sucesso escolar e para a integração social daqueles que dela beneficiaram? (Ferraz, Neves & Gil, 2018: p.87) Qual o estado deste mito apontado pelo professor David Justino?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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