O medo de perder o pai e a mãe

Quando eles partirem, vão-se as vozes, os aromas, os sabores, os ruídos, as gargalhadas traduzidas em áudios nas conversas pelo WhatsApp. Nada voltará a ser igual.

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"Uns têm sorte ao amor, outros ao jogo, outros no trabalho, e outros têm a sorte de ter um pai e uma mãe que tudo deram de si em prol da felicidade dos filhos" Garon Piceli/pexels
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Trememos de medo ao ouvir as histórias de pais e mães que ficaram precocemente sem os filhos/as. Essa dor indescritível, a dor maior, incurável, injusta, de perder quem se ama mais do que tudo, invertendo a ordem natural do rumo da vida, que os mais velhos partirão primeiro.

Não haverá dor comparável a essa, mas, cada um na sua vida, no seu íntimo vai carregando as suas dores e os seus medos, não esperando ouvir do outro lado, que a sua dor é banal ou inferior. Há sofrimentos que podem ser incompreensíveis para quem observa do lado de fora, mas acredito que o respeito deve ser o elo de ligação entre os humanos.

Recentemente, uma publicação numa rede social, de alguém recordando o pai falecido há meia dúzia de anos, e de como a sua dor aumenta a cada dia que passa, fez-me estremecer. Não imagino a minha vida sem o meu pai e a sem a minha mãe. Não concebo chegar à casa que é deles, abrir o portão e não os ver. Não sou imatura, para não entender que viver também é isso, perder, mais tarde ou mais cedo, os que amamos. Mas tal como eles se lembram de cada momento meu, de cada sorriso, de cada abraço na angústia, de cada travessura, também eu tenho na memória, todos os segundos de amor, carinho e proteção.

E quando eles partirem, vão-se as vozes, os aromas, os sabores, os ruídos, as gargalhadas traduzidas em áudios nas conversas pelo WhatsApp. Nada voltará a ser igual. Não haverá palavras ou conforto que possam diminuir essa dor, porque ser filha deles é um privilégio único e irrepetível.

Do meu pai e da minha mãe, ao contrário do que sucedeu noutras gerações mais agressivas e quiçá frias, na forma de educar, não há distância no diálogo, sabem de tudo, falamos de tudo, e sinto que só o meu pai e a minha mãe conhecem a minha essência, por muito que a sorte e o destino me tenham dado alguns amigos com títulos equiparados a irmãos. Mas tanto os amigos como os irmãos permitem escrever duas crónicas distintas. Esses amores cheios de amor ficarão para outra altura.

Qualquer coisa que aconteça ao meu pai e à minha mãe, uma dor, uma queda, é para mim, uma preocupação extrema, de tirar o sono e provocar suores frios. Sabem aquele provérbio "quem meu filho beija, minha boca adoça”? Pois, eu estou na fase do “quem meus pais beija, minha boca adoça”. Quem fizer mal aos meus pais, tem de se haver comigo.

Contudo, tenho a sorte de ter pai e mãe totalmente independentes e capazes de ripostar perante uma atitude indelicada para com eles, porque o envelhecimento também acarreta riscos, leituras e comportamentos indignos. Basta recordar a pandemia e a forma como as pessoas mais velhas foram tratadas. Novos perdendo o juízo, o tino, e a bússola da dignidade humana, completamente taralhouca.

Na vida, uns têm sorte ao amor, outros ao jogo, outros no trabalho, e outros têm a sorte de ter um pai e uma mãe que tudo deram de si em prol da felicidade dos filhos. Esperar à porta da discoteca até às 4h da manhã, para ainda adolescente regressar em segurança a casa; fazer mil e uma mudanças de casa enquanto estudante e procurar desesperadamente por um quarto, debaixo de uns 40ºC à sombra; suportar a dor de ver uma filha profundamente doente e manter o ar normal de que tudo vai correr bem; observar as lutas dos filhos, por vezes ingratas, sentindo-se impotentes, e mesmo assim, erguerem-nos. E tanto outros exemplos poderia dar.

Sim, eu morro de medo de perder o meu pai e a minha mãe.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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