Um grupo de presos e um dos melhores enólogos do país encontram-se num terroir de Torres Vedras

A parceria entre o Estabelecimento Prisional de Leiria e a AdegaMãe resultou num vinho feito com a ajuda dos jovens da prisão. O objectivo é dar formação profissional e tentar servir um futuro melhor.

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dro daniel rocha 24 janeiro 2024 - PORTUGAL Reportagem com reclusos do EP Leiria na AdegaMãe vinhos Inclusus Daniel Rocha
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Ayrton, de 22 anos, está preso pela segunda vez no Estabelecimento Prisional de Leiria. Entrou com 18 anos, na altura com uma “mentalidade um bocadinho mais infantil”, considera. “À medida que o tempo passa, e também com as actividades que frequentei, já tenho outra maneira de ver as coisas. Afinal, isto não é assim tão mau, também me trouxe coisas boas.”

Uma delas foi ter conseguido acabar o ensino secundário. “Se estivesse na rua, não tinha acabado a escola”, garante. Durante o tempo em que esteve preso, conseguiu formar-se na área de multimédia e também recebeu um certificado em cibersegurança, o que lhe poderá trazer “possibilidades numa área de trabalho lá fora”, conjectura.

O “lá fora” está cada vez mais próximo, com a pena a meses do fim. Quando acabou o 12.º ano, foi colocado na Brigada Agrícola, a equipa que toma conta das vinhas e das estufas do Estabelecimento Prisional de Leira, conta Joana Patuleia, a directora da prisão. Na altura, não achou muita piada. “Veio logo dizer-me: ‘Não acha que eu tenho mais competências? Estive aqui a estudar para ter o 12.º ano, tenho muito mais competências do que para estar aqui.”’

Com o tempo, começou a gostar de trabalhar ao ar livre. “Podemos descobrir vocações”, continua a directora da prisão.

Agora, Ayrton é um dos reclusos do regime aberto — a fase mais avançada da pena, que inclui projectos de preparação para a liberdade — com mais conhecimentos na área da viticultura. Costuma também ser um dos escolhidos para integrar o grupo restrito que participa nas actividades fora da prisão, na AdegaMãe, em Torres Vedras, em alturas cruciais da produção de vinho.

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O enólogo Diogo Lopes, de colete, orienta os trabalhos de poda de um grupo de reclusos, onde está Ayrton, de camisola azul

A parceria entre o Estabelecimento Prisional de Leiria e a produtora do Oeste começou em 2018 com a criação de um vinho solidário, o Inclusus, feito na AdegaMãe com uvas vindas dos seis hectares de vinha da prisão. Depois de uma pausa durante a pandemia, a parceria continuou nos últimos anos, com várias formações dos reclusos em Torres Vedras em momentos-chave, como a poda, no Inverno, ou depois da vindima, durante o processo de fermentação do vinho.

Normalmente, a formação é dada por Diogo Lopes, o enólogo da AdegaMãe, também considerado Enólogo do Ano 2022 nos prémios da revista de vinhos Grandes Escolhas. “Não tenho a ambição nem sequer a ilusão de que [os reclusos] saiam daqui técnicos especializados em viticultura ou em enologia”, confessa. “O que eu gostava mesmo era que eles ficassem com o bichinho, para, se algum dia quiserem abraçar alguma carreira, terem aqui uma primeira experiência.”

Em dias de formação, o transporte dos reclusos de Leiria até à AdegaMãe é feito numa carrinha celular e o grupo, embora pequeno, com quatro jovens e um recluso mais velho, transferido de outro estabelecimento prisional e também em regime aberto, é sempre acompanhado por três guardas prisionais, num ambiente mais descontraído.

“É um privilégio para vocês estarem a ser ensinados pelo melhor enólogo do país”, encoraja Joana Patuleia, a directora da prisão. Na lição do dia, o objectivo é perceber como funciona a poda, “quando se acorda a vinha depois da hibernação”, explica Diogo Lopes.

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Vinhas da AdegaMãe e um dos guardas de serviço numa das acções e formação de reclusos naquela empresa

Com uma tesoura, mostra como se cortam os talões, de maneira a deixar apenas “dois olhos” na videira. “Vamos cortar os ramos assim e definir a produtividade do ano seguinte”, exemplifica. “Uma poda bem feita dá-nos mais uvas e mais qualidade e esta é uma altura interessante para intervir [geralmente, a poda faz-se entre os meses de Dezembro e Fevereiro].”

Durante os trabalhos dos reclusos na vinha, de tesoura na mão, um objecto que provavelmente seria proibido dentro do estabelecimento prisional, os guardas conversam e um deles mostra-nos uma fotografia no telemóvel do processo de pisa a pé das uvas feito na própria adega da prisão.

A ideia é que os conhecimentos da formação na AdegaMãe sejam aplicados, mais tarde, também nas vinhas da prisão, plantadas há décadas na Quinta Lagar d’El Rei, em Leiria, e com uma pequena adega de produção própria. “O estabelecimento tem 77 anos e sempre teve vinha”, sublinha a directora.

Antes do nome Inclusus, o “vinho da prisão-escola”, como é conhecido, chegou a ser vendido ao público em garrafões na loja junto à portaria do estabelecimento prisional e depois em bag-in-boxes. “O salto para o engarrafamento deu-se com a AdegaMãe”, orgulha-se a directora.

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O Inclusus Branco é produzido a partir das uvas do Estabelecimento Prisonal de Leiria

Na loja do estabelecimento prisional, também se vendem chinelos em lã burel, cosidos à mão pelos reclusos. São o resultado de uma parceria de reinserção social com a Labuta, uma empresa de Leiria. Aliás, parte das vendas deste calçado vai para os jovens que os fabricam. “Eram chinelos que estavam a cair em desuso, não havia quem os fizesse, e estamos a tentar prolongar esse património cultural”, comenta.

Os legumes cultivados pelos reclusos também são vendidos na prisão a “preços mais acessíveis”, garante a directora. Muitos deles são, no entanto, doados ao Banco Alimentar. “Só no ano passado entregámos cerca de 20 toneladas de produção nossa. É um projecto solidário e isso acaba por entusiasmar os jovens reclusos porque vêem resultados imediatos e acabam por se interessar.”

Penas longas e mente aberta

No primeiro contacto com os trabalhos da Brigada Agrícola, a maioria dos reclusos torce o nariz. “Como são jovens e de zonas urbanas, nunca tiveram contacto com esta actividade”, diz a directora. “Não revelam muita motivação, mas depois acabam por gostar.”

Em 2024, o Estabelecimento Prisional de Leiria, pensado para receber reclusos dos 16 até aos 21 anos, tem uma média de idades de “20/21 anos”, estima a directora. Ao todo, são cerca de 200 reclusos, a maior parte do distrito de Lisboa — “Cascais, Oeiras, Almada, Setúbal”.

Quanto aos crimes pelos quais estão a cumprir pena, são variados, mas, “na sua grande maioria, são crimes violentos”, sublinha. “Crimes contra património com violência, roubos, homicídios e tentativas de homicídio. Estes jovens começam numa primeira fase por serem condenados a penas suspensas, que acabam por ser revogadas. Há a percepção de que são jovens e têm penas curtas, mas são penas muito longas.”

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Reclusos em formação no meio de cubas de inox da AdegaMãe, empresa dos irmãos Bernardo e Ricardo Alves

Alguns acabam por ultrapassar o limite dos 21 anos, mas já se encontram numa fase “avançada do cumprimento da pena”, explica, e podem continuar a frequentar a prisão-escola de Leiria sem terem de ser transferidos para outro estabelecimento prisional.

É o caso de César, com 22 anos, na prisão desde os 18 anos. “Paguei e estou a pagar pelo erro que fiz”, arrepende-se, já com mais de metade da pena cumprida. “Agora, é focar-me na liberdade e na família.”

Na prisão, conseguiu fazer o 7.º ano, que ainda não tinha acabado. Esteve na equipa da cozinha durante sete meses e agora, em regime aberto, passa por várias funções: “Obras, vindima, trabalhos agrícolas…”

No futuro, pondera até um trabalho nas vinhas, aproveitando a porta aberta da AdegaMãe e outras que diz terem-se aberto na sua cabeça. “O que se aprende lá dentro no estabelecimento prisional é uma coisa que abre a mente para trabalhar lá fora.”

Casamento feliz

Depois da formação da poda e antes de almoço, há tempo para uma visita à linha de engarrafamento dos vinhos da AdegaMãe para que os reclusos possam perceber todo o processo. De touca na cabeça, ajudam o pessoal da adega a encaixotar garrafas de Mar Lindo, uma das várias marcas criadas de propósito para exportação, esta para o mercado brasileiro.

Joana Patuleia considera a parceria com a adega um “casamento feliz”, diz. “Partilhamos dois valores essenciais: a crença na capacidade de mudança do ser humano e o valor da reinserção social.” O facto de ser uma “empresa com gente muito jovem” é também inspirador para os reclusos, acredita. “Cria uma certa proximidade e isso pode ser uma referência para eles.”

Bernardo Alves, fundador da AdegaMãe, faz questão de almoçar numa mesa com os reclusos e com os guardas prisionais depois da formação. Aí, há tempo para conversar e contar histórias. Por exemplo, a do enorme lustre que paira sobre a mesa, comprado na Internet e chegado à adega meses depois em mil e uma pequenas peças, quando já nem se lembrava dele.

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O enólogo Diogo Lopes na sala de refeições e provas da AdegaMãe, em Torres Vedras Rui Gaudêncio (arquivo)

“Quem é esta mãe da AdegaMãe?”, pergunta César. Bernardo Alves, cujo nome, aliado ao do irmão, Ricardo Alves, inspirou o nome da empresa da família, a Riberalves, famosa pelo bacalhau, recorda a fundação da casa, em 2011, uma homenagem à sua própria mãe, Manuela Alves.

Para si, o projecto com a prisão de Leiria é essencialmente “gratificante”, considera. “Da nossa parte, não tem qualquer lucro. O lucro reverte para o EPL (Estabelecimento Prisional de Leiria), sobretudo para comprar novo equipamento. É um projecto social do qual nos orgulhamos muito e que fazemos por apreço e por acreditarmos nos jovens deste país.”

A relação EPL/AdegaMãe começou com um contacto com outra prisão, a de Tires, onde a adega também tem a “pretensão de desenvolver uma parceria”, adianta Bernardo. Da prisão-escola de Leiria, receberam um pedido de ajuda de apoio “à vinha” e às “condições de vinificação”, explica. “Depois surgiu a ideia de fazermos um vinho aqui.”

O Inclusus Branco e Tinto da colheita de 2023 tem desde o dia 9 de Abril, data do 77.º aniversário da prisão, um novo rótulo, mais chamativo, desenhado pela mesma equipa que trabalha a imagem das outras referência da AdegaMãe. “Precisamos de um player a nível de retalho nacional que o reconheça como um projecto que contribui para a inclusão”, continua Bernardo Alves, que quer que o vinho se torne mais conhecido e chegue, por exemplo, a uma grande superfície comercial (por enquanto, só está à venda na loja da AdegaMãe e na loja da prisão).

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Reclusos na linha de engarrafamento na AdegaMãe

Diogo Lopes, o enólogo da AdegaMãe, faz visitas ocasionais à vinha da prisão para resolver algum problema pontual. No entanto, o grosso do trabalho concentra-se na adega em Torres Vedras, principalmente na altura em que chegam as uvas em contentores, vindas da prisão. “Os miúdos ajudam a descarregar e durante a fermentação também estão presentes algumas vezes.”

O resultado do processo é “um vinho para as pessoas, descomplicado”, descreve. “Conseguimos sempre ter as uvas que vêm daquela quinta e depois temos cuidado com a transformação. Não temos nada de grandes truques, de grandes técnicas, é um vinho sem maquilhagem.”

Segundo o director-geral da AdegaMãe, a formação in loco é uma componente essencial da reinserção. “Infelizmente, muitos jovens não tiveram a oportunidade que outros tiveram. Acho que todos merecem ter conhecimento e que lhes sejam mostrados caminhos que podem surgir no futuro, mais integradores, mais sociáveis, mais calmos para a vida deles.”

Ayrton ainda não sabe o que vai fazer quando estiver em liberdade, mas não exclui o trabalho numa adega. “Como já tenho um bocadinho de experiência e gosto por aquilo que faço, é uma possibilidade”, afirma. “As pessoas bebem o vinho, acham que é só apanhar as uvas, mas não sabem como é que os vinhos são feitos. Acho interessante saber esse processo todo.”

Os dias de formação fora da prisão são uma boa maneira de “aliviar mais a cabeça”, confessa. “Dá para nos abstrairmos e sempre aprendemos mais alguma coisa. Não passamos tanto tempo fechados.”

Ópera e grilos

A Ópera na Prisão, uma actividade apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, e que chega a juntar canto lírico e rap, é outra das parcerias de formação bem-sucedidas do Estabelecimento Prisional de Leiria e uma das mais antigas, a realizar-se desde 2004.

Os reclusos já deram concertos no auditório da Gulbenkian, em Lisboa, e, desde 2021, têm direito a um pavilhão dentro da prisão, o Mozart, só para espectáculos e ensaios que podem incluir as famílias.

Na página da fundação, Paulo Lameiro, director artístico do projecto, explica como a construção do Pavilhão Mozart, numa antiga oficina de encadernação, foi importante sobretudo para a própria comunidade “dentro da prisão assistir ao espectáculo”.

Ayrton fez dois espectáculos com a Ópera na Prisão e chegou a apresentar-se em Lisboa, onde a mãe até fez vídeos para mostrar à família, conta. “É algo interessante porque nos ajuda a nós, reclusos, a sermos mais unidos. Posso ver aquela pessoa, mas não ter vontade de conhecê-la. Ali, naquele espaço, como convivemos todos, já dá para conhecer [as pessoas] um bocadinho mais.”

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Reclusos do Estabelecimento Prisional de Leiria em regime aberto durante uma jornada de trabalho de poda nos seis hectares de vinha que pertencem à prisão

Ter formação em várias áreas, incluindo na música e no teatro, pode ser um trunfo. “Fazemos um bocadinho de tudo, dá também para conhecer várias áreas”, continua o recluso de 22 anos. “[É bom] para não estarmos numa área que não gostamos e sairmos só a saber fazer aquilo.”

Joana Patuleia, a directora da prisão, refere que há outro projecto em desenvolvimento, também financiado pela Gulbenkian, a envolver “a produção de grilos” dentro do estabelecimento prisional, outra “oportunidade”.

A palavra “oportunidade” é, aliás, uma constante no seu discurso, connosco e com os reclusos. “Apesar de este ser um período difícil e de ser dolorosa a privação de liberdade, o que lhes digo é que esta pode ser uma oportunidade para adquirirem competências e preparem-se para recomeçar.”

Ayrton diz estar preparado para recomeçar. Quando estiver fora da prisão, quer levar a família a almoçar no restaurante da AdegaMãe e explicar-lhes o processo de vinificação. “Passar-lhes os conhecimentos que já tenho”, diz.

César também quer regressar noutro contexto, para almoçar com a família, na adega no Oeste onde recebeu formação. “O pior já passou”, afirma. “Agora, já não vale a pena olhar para trás, é olhar para a frente, que está quase a chegar a liberdade.”

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