O 25 de Abril e a liberdade na sala de aula

Sinto que a missão da escola (e não exclusivamente dos professores das Ciências Sociais e Humanas) é a de celebrar e contagiar os alunos pela alegria de vivermos num país livre.

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Os alunos concluíram que é muito fácil só darmos por falta de algo quando o perdemos Rui Gaudêncio/Arquivo
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Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.

Sophia de Mello Breyner

Os alunos gostam do tema do 25 de abril. Sim, gostam. Gostam de descobrir e discutir os intensos anos do pré e pós 25 de abril. Mas estes temas estão muitas vezes nas pontas dos programas e nem sempre se chega lá ou, então, não se chega lá com o tempo suficiente para diversificar atividades ou aprofundar o estudo.

Por outro lado, eu, que nem sou de História, sinto que a missão da escola (e não exclusivamente dos professores das Ciências Sociais e Humanas) é também a de celebrar e contagiar os alunos pela alegria de vivermos num país livre. Mesmo os alunos mais amorfos não conseguem ficar indiferentes quando os confrontamos com coisas que lhes parecem inaceitáveis, impossíveis mesmo, assim como quando percebem que as mesmas não aconteceram no tempo dos dinossauros, mas apenas há meia dúzia de anos (força de expressão), isto quando os seus pais eram crianças ou quando os seus avós eram gente adulta que vivia com o medo à superfície da pele. E todos, na escola, devemos recordar a conquista da liberdade. Porque é preciso fazer memória.

Um pequeno projeto, integrado nas competências da disciplina de Português, foi o meu contributo este ano para se fazer memória do 25 de abril. Assim, a partir de uma proposta do manual, propus aos meus alunos algumas atividades que, quero acreditar, os tornaram mais conscientes do que é isto da liberdade que vamos comemorar no dia 25.

Numa primeira etapa, fizemos leitura de imagens, procurando associar cinco fotografias a cinco tipos de liberdades — liberdade de imprensa, de circulação, de voto ou escolha, liberdade religiosa e, por fim, de expressão. E, em grupos, numa dinâmica cooperativa, discutimos estas liberdades. Na aula seguinte, continuámos o projeto, ouvindo o testemunho de uma escritora perseguida, exemplificando, assim, o que significou não ter liberdade de expressão. Seguiu-se uma fase de pesquisa de outros exemplos.

Depois, deu-se talvez o momento mais marcante da atividade: um exercício feito a partir de um conjunto de afirmações, tendo os alunos de sugerir se estas eram verdadeiras ou inventadas, justificando os motivos das suas escolhas. Listo abaixo apenas algumas das afirmações inacreditavelmente verdadeiras.

Antes do 25 de abril:

  • Não se podia jogar cartas no comboio (como os alunos tanto gostam de fazer, sobretudo na última semana de aulas);
  • Não se vendia Coca-Cola (que alguns, não obstante os malefícios da bebida, não dispensam ao almoço nos formatos light, zero ou outros);
  • As professoras precisavam de uma autorização para casar (e riram-se quando disse que, felizmente, casei muito depois do 25 de abril);
  • Era necessário possuir uma autorização para se ter um isqueiro (uma medida protecionista da indústria fosforeira, que acharam caricata);
  • Não era permitido juntar pessoas livremente na rua, era um ajuntamento (“quando estamos todos ao molho à porta da escola isso podia ser considerado um ajuntamento?”, questionaram);
  • Enfermeiras, telefonistas e hospedeiras (eventuais futuras profissões das alunas) não se podiam casar (“E se fosse um telefonista?”, perguntou outro aluno);
  • Era proibido andar de bicicleta sem licença;
  • Não era permitido dar um beijinho na rua (afirmação que se suscitou logo a pergunta: “Professora, um beijo ou um beijinho?”).

Desta vez, fiquei pelo beijinho e deixei de fora as célebres multas, que teriam dado pano para mangas e, na verdade, isto era um “pequeno” projeto (1.º – Mão na mão: 2$50; 2.º – Mão naquilo: 15$00; 3.º – Aquilo na mão: 30$00; 4.º – Aquilo naquilo: 50$00; 5.º – Aquilo atrás daquilo: 100$00; 6.º – Parágrafo único – Com a língua naquilo: 150$00 de multa, preso e fotografado).

Procurando desconcertar todos, mas em particular as alunas, acrescentei ainda a esta lista uma última informação: o marido que assassinasse a mulher, caso a tivesse apanhado com outro homem, era punido com seis meses de desterro, apenas. Ficaram algo estarrecidos, isto já não tinha a graça que alguns tinham conseguido ver no beijinho. E creio que perceberam a mensagem.

Passámos à etapa seguinte, a tarefa final do projeto: escrever. E, agora, sim, estavam prontos para redigir um texto de opinião. E creio que não foi difícil.

Concluíram que é muito fácil só darmos por falta de algo quando o perdemos, e que a liberdade é frágil, precisa de ser cuidada; que devemos lutar para que mais pessoas possam viver assim; que a conquista da liberdade contribuiu para o desenvolvimento social e para a igualdade; que a liberdade dá a voz a minorias e que os jovens desvalorizam a liberdade porque a têm e não sabem o que é viver sem ela.

Para a semana, vou ainda levar para a aula excertos dos livros que eles andam a ler e um kit com lápis azuis. Vamos ver o que poderia ser riscado, “a bem da nação”, se vivêssemos antes do 25 de abril.

Entretanto, entro no fim-de-semana já com uma leve sensação de dever cumprido. E que venha a próxima semana e celebremos a madrugada tão esperada de que Sophia nos fala.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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