O Coração Ainda Bate. Os facilitadores

Inês Meneses lembra-nos de que a confiança pode ser uma surpresa.

O miúdo tinha uma mala de marca a tiracolo que lhe baloiçava no corpo esguio. Braços e pernas longas, onde a roupa serpenteava. Uma chusma de brincos reluzia numa das suas orelhas. Fixei-lhe os detalhes enquanto nos entregava a sua confiança: “desculpem, a minha mãe foi-se embora e faltam-me três euros para comprar a peça que quero ali na Adidas”.

Ao mesmo tempo que dizia isto, mostrava, da malinha verde e vermelha, uma série de notas novas que não pareciam deixar margem para qualquer dúvida. Quase sem pensar fomos ao mesmo tempo à carteira. Eu já tinha uma moeda de dois euros na mão, mas o meu marido antecipou-se: “tens aqui quatro euros”. O miúdo agradeceu de coração e foi muito rápido a virar costas. Fiquei a vê-lo a voltar ao centro comercial onde a tal compra não podia esperar. Seria mesmo essa a sua intenção? Enquanto sorríamos perante a situação pouco comum e a nossa boleia não chegava, continuei a segui-lo com os olhos: parou em frente à porta. Pareceu-me que acabava um cigarro antes de entrar.

Aquele remate antes de concretizar um sonho outra vez possível. De repente lá entrou na porta giratória e deixei de o ver. A boleia demorava e ficámos cá fora, debaixo do céu turvo que agora nos dava tréguas. Entre o sorriso que nos ficara daquele momento inusitado e a conversa de circunstância que alimenta a espera, ei-lo de volta. Um gatilho accionado na nossa direcção, muito certeiro. Abriu o saco e mostrou a compra: “era mesmo para isto. Está aqui!” E, com o mesmo sorriso na cara com que nos pedira o dinheiro, virou-se para o meu marido e disse: “está aqui o troco dos quatro euros”.

Tentámos recusar o troco, mas ele insistiu. Era uma questão de honra e orgulho na sua verdade. E, porque não, na sua vaidade?! De novo veloz, desapareceu e a nossa boleia chegou por fim. Quando entrámos no carro ainda fiquei a vê-lo em passada rápida com o saco do seu trunfo nas mãos. Ia de volta, feliz com a compra. A mala, com menos recheio, continuava a baloiçar-lhe no corpo, que, não tarda, seria adornado pela nova conquista.

Será difícil esquecer-me deste episódio. Pela confiança do miúdo. Pela nossa confiança nele. Será improvável que o voltemos a ver ou sequer que o possamos reconhecer, e ele a nós, mas ficou-nos uma sensação de bem-estar que não se explica bem em palavras. Foi um momento em que confiámos uns nos outros. A confiança é que nos continua a suster. A confiança é uma rede invisível onde a sociedade amortece as suas quedas. Confiarmos uns nos outros faz com que nos levantemos até quando caímos várias vezes.

Este episódio está longe de ser o primeiro ou o último a acontecer-me ou a acontecer-nos. Prefiro confiar. Na dúvida, confio. Não me importo de perder uns trocos a troco de nada. A minha mãe dizia sempre: “fazer o bem sem olhar a quem” e eu assim farei até poder. Confiando na rede invisível que nos sustém e ampara.

Vou agora de regresso a casa mais feliz. Ele deve estar algures por aí vestido com a sua peça nova.

Devia haver uma profissão chamada: Facilitador. Candidatava-me.

O coração ainda bate.

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