E se os votos em branco contassem? (Uma ideia constitucionalmente incorreta)

Um sector de cadeiras vazias seria o termómetro da qualidade dos candidatos e sinalizaria a exigência dos eleitores, que não se deixam enganar por cantos de sereias e recusam votar no menor do males.

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Os votos em branco são o parente pobre das eleições. As análises dos especialistas e dos interessados sobre os votos depositados nos partidos a concurso são exaustivas. Fazem-se as contas aos mandatos atribuídos a cada partido e especula-se sobre a geometria pós-eleitoral que garanta a sacrossanta estabilidade política. A abstenção elevada tem vindo à colação por interiorizar uma crise de representatividade, atingindo a alma do regime demoliberal. Os votos em branco são olimpicamente ignorados. São uma nota de rodapé no apuramento dos resultados do sufrágio. Não contam.

E se fosse ponderada a imputação de consequências aos votos em branco? Deviam as regras de representatividade atribuir lugares no Parlamento aos votos em branco? Para os leitores menos familiarizados com os processos eleitorais e com o fenómeno político, parece uma hipótese absurda: qual o fundamento de atribuir lugares no Parlamento que correspondam ao peso dos votos em branco, se o voto em branco é uma não escolha? Como se traduzia essa lista fantasma?

Era isso mesmo: um certo número dos lugares do Parlamento ficariam vagos. Seriam os “deputados-fantasma”, a consequência de um número de eleitores ter preferido não escolher nenhum dos partidos a concurso. Se esse número de eleitores for significativo, não se pode omitir o seu significado (a menos que a omissão seja intencional, com danos visíveis para a qualidade da democracia). O silêncio dos eleitores pode conter uma mensagem. É inaceitável que os partidos rateiem entre si o bolo dos votos em branco na forma de mandatos parlamentares.

Os leitores argumentarão que reservar lugares no parlamento para ninguém se sentar neles é contraproducente no contexto da crise de representatividade que as democracias atravessam. A crise é agravada pela expansão de forças populistas, à direita e à esquerda, que ameaçam os alicerces da democracia, uns de forma ostensiva, outros de forma velada. Contra estas reservas, avanço a hipótese de a significação eleitoral dos votos em brancos ajudar a aumentar a qualidade do processo político, amortecendo uma das ameaças existenciais à democracia: o divórcio entre os representados e os representantes, que desvia um número crescente de eleitores para o refúgio no voto de protesto, engrossando o caudal de representação dos partidos antissistema.

Admito que parto de um pressuposto contestável: entender os votos em branco como sinal de não-identificação com as propostas eleitorais a concurso. Quem vota em branco – continuo a laborar nesta hipótese – decide que o voto não deve ser depositado na hipótese menos má. Se não houver um menor denominador comum apelativo ao voto num partido, os eleitores (que, para conforto do meu pressuposto, são eleitores exigentes) decidem comparecer na sua secção de voto e depositam o voto em branco, fugindo da abstenção. Concluíram que nenhum programa eleitoral e nenhuma lista têm qualidade suficiente para justificar o seu voto.

O pressuposto, admito, carece de verificação. A ser válida esta interpretação do voto em branco, saber-se-ia que aquele sector do parlamento com os lugares vagos representa a não identificação de eleitores com os partidos que concorreram à eleição. A sua voz silenciosa teria representação nos lugares vazios. Não seria uma voz omitida, como agora é. A mensagem dos votos em branco teria significação democrática. Estaria vedada a redistribuição dos mandatos que correspondessem aos votos em branco pelos partidos com assento parlamentar. Essa entorse ao princípio da representatividade (e à própria democracia) não seria permitida.

Os leitores podem objetar que a atribuição de assentos parlamentares aos votos em branco não resolve a crise existencial da democracia. Dirão que até a pode agravar, pois a visibilidade pública de uma secção do parlamento por ocupar seria um embaraço para a democracia. Proponho uma leitura diferente: seria o termómetro da qualidade dos políticos que concorreram às eleições. Sinalizaria a exigência dos eleitores, que não se deixam enganar por cantos de sereias e pela lógica do voto no partido que corresponde ao menor dos males (um mal não deixa de ser um mal). Seria denotativo da responsabilidade dos eleitores que preferiam comparecer na eleição, votando em branco – a alternativa podia ser a abstenção, um mal pior. Atribuir lugares no parlamento aos votos em branco podia ajudar à descida da taxa de abstenção. Seria uma boa notícia para a qualidade da democracia e do processo político.

Já que os leitores estão preocupados com a reputação da democracia se aos votos em branco corresponderem lugares vagos no Parlamento, pense no seguinte: os atores políticos envolvidos na vida político-partidária teriam de alterar o comportamento, deixando de desprezar o voto em branco. O método avestruz deixaria de ser legítimo: enfiar a cabeça na terra adia os problemas até a um futuro que já pode ser tardio para a sobrevivência da democracia. Os partidos, os seus militantes e os eleitos, teriam de provar que merecem a confiança dos representados. A qualidade do desempenho seria uma exigência que agora não participa nas suas prioridades. Os eleitos teriam de repensar a responsabilidade perante os representados.

O fiel da balança seria a eleição seguinte: o número de lugares vagos no Parlamento aumentou ou diminuiu? Para bem dos eleitos, seria de esperar que esse contingente tivesse diminuído. Seria a prova de que os eleitores aumentaram o nível de satisfação com o desempenho dos representantes e que a mediocridade média destes teria sido amortecida. Deixar lugares vagos no Parlamento faria bem à saúde da democracia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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