A tradução não quer ser o parente pobre da literatura e vincou-o no Correntes d’Escritas

Os tradutores literários portugueses estão a organizar-se para criar boas práticas na profissão. No festival literário da Póvoa de Varzim, a tradução, vista como periférica, ganhou visibilidade.

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O papel da tradução como mediadora da relação entre escritor e leitor esteve em destaque no 25.º edição Correntes d’Escritas ADRIANO MIRANDA
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O escritor Rui Zink e a sua tradutora para bangla, Rita Ray, numa mesa-redonda com o alemão Michael Kegler e a moçambicana Sandra Tamele JOSÉ CARLOS MARQUES/CÂMARA MUNICIPAL DA PÓVOA DE VARZIM
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O Correntes d'Escritas terminou este sábado na Póvoa de Varzim ADRIANO MIRANDA
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Outra das mesas do I Encontro de Tradutores ADRIANO MIRANDA
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Quando a obra vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa 2024, o romance Temporada de Furacões, da mexicana Fernanda Melchor, foi anunciada na abertura da 25.ª edição do festival literário Correntes d’Escritas, os nomes dos tradutores da obra para língua portuguesa, Cristina Rodrigues e Artur Guerra, não tiveram direito a menção.

O tradutor Michael Kegler, que está desde 2020 a trabalhar na versão em língua alemã da colecção O Bairro, de Gonçalo M. Tavares, reparou nesse lapso. Referiu-o, mais tarde, no I Encontro de Tradutores – A Importância da Tradução em Tempos de Indigência, de que foi curador, uma iniciativa paralela do festival literário que durante dois dias juntou tradutores, escritores e editores na Fundação Dr. Luís Rainha, na Póvoa de Varzim.

Na capa da edição portuguesa, lançada pela Elsinore, aparecem, além do título do livro e do nome da autora, uma citação do jornal The Guardian sobre a obra e uma referência aos prémios importantes de que o livro foi finalista. Mas, de novo, os nomes dos tradutores não estão lá.

Discretamente, o debate sobre o papel dos tradutores acabou porém por tornar-se central no festival que este sábado chegou ao fim. Logo na primeira mesa, no palco do Cine-Teatro Garrett, a escritora e investigadora guineense Odete Costa Semedo sublinhou a importância da tradução “como alicerce de memória para as diásporas” e para “as comunidades deslocadas” em situações de conflito. Pediu que se reflectisse, por exemplo, sobre “os palestinianos espalhados pelos territórios de acolhimento” que “terão nos textos traduzidos o acesso à sua herança literária”.

Esta intervenção foi como que o ponto de partida para uma discussão que se prolongou noutros espaços do Correntes d'Escritas sobre os dilemas que a profissão de tradutor enfrenta, desde logo a invisibilidade e a precariedade, mas também sobre as novas ferramentas de tradução trazidas pela inteligência artificial (IA), a linguagem inclusiva e o politicamente correcto. Há uns anos, como lembrou Michael Kegler, traduzia-se de outra forma. "Nós, homens, cis [pessoa cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído no nascimento​], brancos e velhos, traduzíamos para um leitor, cis, branco, velho... Isso mudou."

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O tradutor alemão Michael Kegler foi o curador do I Encontro de Tradutores no Correntes d'Escritas José Carlos Marques/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

O alemão diz que não tem soluções definitivas para os desafios, pois a tradução é “sempre uma corda bamba ou um jogo de cintura". Nesta profissão "não há modelos", esses estão "naquela chamada inteligência artificial…”. Ainda que o politicamente correcto seja hoje encarado por muitos, como se viu nas discussões deste Correntes, como uma espécie de censura, Michael Kegler pede que se veja nela uma ferramenta de liberdade que "contribui para a riqueza da língua". Até porque a tradução é necessariamente, disse, "uma negociação entre escritoras e escritores, leitores e leitoras”.

Os perigos da inteligência artificial

“É ofício da tradutora, ao estilo Pandora ou Houdini, não deixar morrer as palavras, e em bom rigor prestar-lhes respiração boca-a-boca”, defendeu a tradutora e académica portuguesa Margarida Vale de Gato na sua intervenção no Correntes d'Escritas. Alertando para o perigo de se considerar que haverá vantagens no uso da IA na tradução de livros considerados “supostamente ‘menos complexos’”, lembrou que os tradutores são “essenciais” num mercado como o português, em que as obras traduzidas representam “uma parcela enorme de tudo o que se publica”.

Mais de 60% da ficção publicada em Portugal é traduzida, mas “curiosamente isto não tem vindo a empoderar os tradutores, antes pelo contrário”. Em Portugal, explicou, a Lei de Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos, de Março de 1985, é “perfeitamente favorável” ao tradutor, equiparando-o a criador artístico e literário. No entanto, são “conhecidos diversos casos recentes em que a Autoridade Tributária penalizou tradutores por passarem recibos como ‘criação artística e literária’, impondo-lhes uma tributação três vezes superior”.

Segundo a lei portuguesa, o tradutor tem direito a visibilidade e a direitos de autor mas uma cláusula refere a possibilidade de outros contratos com o editor ou da figura da obra por encomenda. “As equipas gestoras de grandes grupos editoriais têm recorrido ao subterfúgio das ‘obras por encomenda’ para contornar o referido código, extraindo aos autores-tradutores os direitos sobre as obras que entregam, inclusive aqueles de que precisam para alimentar os sistemas fechados de IA com que imaginam poupar dinheiro nos tais livros menos complexos.”

A investigadora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa traduz há 25 anos. Quando começou, os seus honorários-base rondavam os seis euros por página; hoje estão nos oito euros, mas já chegou a ganhar dez e 11 euros pelo mesmo trabalho. Como termo de comparação, no Reino Unido os tradutores recebem actualmente 35 a 40 euros por página, revelou Daniel Hahn, o premiadíssimo tradutor de José Eduardo Agualusa para língua inglesa (juntos já receberam importantes prémios, um deles o International Dublin Literary Award). Em média, são publicados por ano naquele país 25 livros originalmente escritos em língua portuguesa. “São bastantes, mas eu preciso de traduzir cinco por ano para conseguir pagar o empréstimo da minha casa”, disse no I Encontro de Tradutores.

É neste contexto que um grupo de tradutores literários portugueses está a juntar-se para fixar boas práticas e um contrato-modelo. “O grupo está em diálogo com a Associação de Profissionais de Tradução e de Interpretação (APTRAD) para pensar a sua situação corporativa e fazer a ponte com organismos do livro e agências governamentais reguladoras em Portugal”, explicou Margarida Vale de Gato ao PÚBLICO, adiantando que está previsto o lançamento de um manifesto.

O grupo pretende também fazer “um inquérito para aferir as reais condições de trabalho e necessidades” destes profissionais, e a partir dele alavancar reivindicações conjuntas como “o mínimo de pagamento de tradução à página”. Outras prioridades são a reflexão sobre “modos de defesa do estatuto autoral” e a exigência de que se fixe “de forma cabal” a figura da “criação artística e literária” para os recibos que passam. O diálogo com a Associação Portuguesa dos Editores e Livreiros (APEL) também já foi iniciado.

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O escritor cabo-verdiano Joaquim Arena e a tradutora Margarida Vale de Gato, ao seu lado, na plateia do I Encontro de Tradutores José Carlos Marques/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

As línguas periféricas

Nas redes sociais, lamentou-se que o I Encontro de Tradutores não incluísse mais portugueses. Ao PÚBLICO, o curador assumiu a lacuna, que tornou a invisibilidade dos tradutores em Portugal ainda mais visível, e prometeu corrigi-la em futuras edições. Desta vez, focou-se mais nos que levam as obras de língua portuguesa para outros países, e quis dar voz aos tradutores de mercados periféricos.

Uma das convidadas foi a moçambicana Sandra Tamele, uma arquitecta falhada que “vive e respira” tradução. Fundou a Trinta Zero Nove, pequena editora independente vocacionada para a publicação de literatura traduzida. Em 2021, na Feira do Livro de Londres, foi galardoada com o Prémio de Excelência Internacional para Iniciativas de Tradução Literária; dois anos depois, na Feira do Livro Infantil de Bolonha, foi considerada a editora do ano em África.

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A tradutora e editora moçambicana Sandra Tamele José Carlos Marques/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

“Foi um projecto que nasceu da necessidade, porque ninguém valoriza a tradução literária no meu mercado, se é que posso chamar de mercado ao que existe em Moçambique”, explicou Sandra Tamele. Como arquitecta, tornou-se-lhe muito difícil ver-se indesejada (“Acho que ofendia o machismo e o patriarcado”), e por isso foi inventando outros caminhos. “Mas na tradução vejo-me invisível, e isso é extremamente frustrante”, confessou na sessão que partilhou com a indiana Rita Ray, de Calcutá, que traduz para bangla as obras de Rui Zink. O escritor também esteve presente no encontro, que contou ainda com José Eduardo Agualusa, Gonçalo M. Tavares, Manuel Alberto Valente, Sara Gutiérrez e Harrie Kemmens.

Para estimular a renovação na profissão, Sandra Tamele criou em 2015 um concurso anual de tradução literária para jovens moçambicanos. Aos 43 anos, era uma das mais novas tradutoras em Moçambique e decidiu que era altura de pensar a longo prazo. Com a independência, surgiu uma elite literária que, na sua opinião, não está a ser renovada – “porque a qualidade do ensino foi baixando por uma série de políticas que foram falhando” –, e como alguém que teve a oportunidade de estudar acha-se no dever de contribuir para o enriquecimento cultural do país.

No seu caso, “ser tradutor e ser activista vão de mãos dadas”. A sua Trinta Zero Nove publica muitas obras de mulheres, mas também literatura LGBT. Tem agora uma colecção de poesia, traduziu A Perseverança, do poeta anglo-jamaicano Raymond Antrobus, surdo. “Vamos experimentando coisas que ninguém faz. Acho que somos os únicos tradutores do Antrobus no mundo e também da Carolina Schutti. Mas ninguém valoriza. Esta invisibilidade que eu luto tanto para contrariar persegue-me.” É com o trabalho de intérprete e tradutora que Sandra Tamele financia a sua editora. “Vou à falência com um sorriso no rosto, porque estou a fazer o que quero”, confessa.

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Um dos livros editados pela Trinta Zero Nove, cujo nome foi escolhido para celebrar o 30 de Setembro, Dia Internacional da Tradução. dr

A ideia de inclusão é central neste projecto. No sentido financeiro, pois, diz a tradutora e editora, tem livros 40% mais baratos do que o habitual em Moçambique. Mas também no sentido da correcção de assimetrias históricas, ao publicar obras de mulheres negras num continente em que persistem vincados preconceitos de género. Sandra Tamele contou na Póvoa de Varzim que participou num grande festival literário em Maputo em que questionou onde estão as mulheres no mundo literário moçambicano. Ficou paralisada com o que ouviu de um homem educado. “A resposta de um poeta, depois de me ter ignorado meia hora, foi que ‘a vulva da mulher inspira grande poesia’ e ‘o poeta depois tem de se livrar do cheiro dela, com a água que a mulher traz para ele tomar banho'. Esse, disse, 'é o lugar da mulher [na literatura]’. Fiquei extremamente chocada. Isto foi dito à frente de 200 pessoas e ninguém se levantou para dizer alguma coisa.”

A Trinta Zero Nove também é inclusiva ao valorizar as diversas línguas de Moçambique, país onde se contabilizam 42 línguas faladas, muitas delas escassamente escritas e publicadas. “Temos pouco registo escrito nestas línguas, tirando a Bíblia, que foi um trabalho espectacular dos missionários", apontou Sandra Tamele. "Às vezes, os meus tradutores usam a Bíblia como material de referência para encontrarem alguns equivalentes." Os audiolivros desta pequena editora permitem-lhe ainda chegar “aos 39% de moçambicanos” que em 2024 ainda não sabem ler nem escrever.

A ameaça da inteligência artificial combinada com a pandemia foi o que levou esta tradutora a dedicar-se mais aos projectos literários do que à tradução comercial ou à interpretação. “Eu sou completamente substituível para traduzir um relatório. Mas para traduzir literatura já não, principalmente quando o faço para as línguas moçambicanas.”

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A tradutora indiana Rita Ray, que acaba de criar a editora Harmad José Carlos Marques/Câmara Municipal da Póvoa de Varzim

Tradutores e activistas

Também a tradutora e académica Rita Ray acaba de criar na Índia a editora Harmad, que significa “Pirata Português”, onde pretende publicar traduções em bangla e hindi. Em Calcutá, a tradução é vista como “uma literatura secundária”, apesar de haver uma tradição de ler literatura traduzida que remonta ao século XIX.

Uma das suas mais recentes traduções, Manual do Bom Fascista, de Rui Zink, está a ter um êxito excepcional. Foi publicada pela Dhansere, editora fundada por um casal (ele poeta, ela artista). “O livro é muito bonito e está a vender muito bem, mas a editora não faz publicidade suficiente. Também não gastaram nenhum dinheiro com a tradução”, contou Rita Ray, que concorreu com esta obra ao programa conjunto de Apoio à Tradução e Edição da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas e do Instituto Camões. “É suficiente, mas para Manual do Bom Fascista o Camões deu 150 euros para direitos e publicidade e publicação de toda a obra. O que aconteceu é que nem o Rui nem eu recebemos um tostão.”

Rita Ray queixa-se de ter de pregar aos editores coisas básicas como direitos de autor. “Não há essa ideia de que tem de se pagar ao outro. Tenho de ensinar que é preciso escrever ao agente literário que representa a obra e que tem de se pagar. Sou activista neste sentido, já que estou a lutar pelos direitos dos autores. É um grande problema.” Lembra que a região de Calcutá partilha a língua com o Bangladesh, país onde ninguém fala português mas que já traduziu vários livros de José Saramago a partir do inglês e com ajuda de software. A pirataria é outro dos problemas.

Por pertencer a um mercado maioritariamente de língua inglesa, além de Fernando Pessoa e de José Saramago nenhum autor da língua portuguesa é conhecido em Calcutá. “Eu tenho de lhes dizer: ‘Este autor é muito bom, têm de ler”, explicou Rita Ray. Excepção para Rui Zink, que tem fãs, pois “o humor negro que ele usa é uma característica dos bengalis também”, explica.

Esta segunda-feira, às 18h30, no Instituto Cervantes, em Lisboa, realiza-se a última sessão desta 25.ª edição do Correntes d'Escritas, juntando escritores de língua portuguesa e de expressão ibérica: a poetisa chilena Carmen Yáñez (viúva de Luis Sepúlveda), a escritora espanhola Pilar Adón e o autor português Sandro William Junqueira, numa mesa moderada pelo ex-editor Manuel Alberto Valente. Ausentes estarão Alana S. Portero e Alejandro Zambra, que cancelaram a vinda ao festival por motivos pessoais.

O PÚBLICO esteve na Póvoa de Varzim a convite do festival

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