De expatriados, imigrantes e uma improvável quase convergência

Ao contrário do que ocorria com extinto SEF, com a AIMA é possível falar com alguém ao telefone – mas para ouvir que as vagas para entrevistas só irão abrir quando houver novo sistema.

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Alguém aqui já viu americano imigrante? E nepalês expatriado? Podem até tê-los visto, mas, convenhamos, são artigos raros. O expatriado deixa a própria pátria para viver no estrangeiro, em um quase autoexílio, quase sempre, acompanhado dos altos ordenados exigidos para um visto de nômada digital, de uma polpuda reforma que chega em dólares, libras ou euros, ou até mesmo dos rendimentos oriundos dos investimentos em fundos, ações, imóveis e sabe-se lá mais o quê. Não dependem do mercado de trabalho português, não fazem contribuições à segurança social e mal pagam impostos, já que muitos se beneficiam do estatuto de residente não habitual, esse que iria acabar em 1 de janeiro do corrente ano, mas que, após gritaria, não ficou bem assim.

Já o imigrante carrega em si o peso do movimento. Movimento de quase fuga, que o leva em busca de uma vida melhor, que o faz procurar proteção e abrigo, seja à violência do dia a dia das grandes cidades do Sul Global, seja à violência do próprio Estado ou das guerras.

Fato é que, no imaginário geral europeu, o expatriado vem de países ricos e é recebido de braços abertos. Abrem-se novos restaurantes para servir o brunch aos finais de semana, coworks onde possam fazer networking com outros expatriados, ementas em inglês, publicidades idem, até o garçom fala inglês! E aos poucos vemos que talvez o português esteja a ficar para segundo plano.

O imigrante, por outro lado, prepara o brunch, limpa o cowork, serve o prato, entrega a comida, pode falar inglês, mas também espanhol, “brasileiro”, hindi, nepalês.

O expatriado vive em apartamentos T1 de 2000 euros no centro de Lisboa, valor atingido após concorrência árdua com outros expatriados por um imóvel anunciado a 1500 euros, mas que viu a si adjudicado após a oferta do pronto pagamento de um ano inteiro de uma renda superior à desejada pelo senhorio.

O imigrante, este, vive nas periferias, em quartos arrendados a 500 euros, em camas arrendadas a 200 euros ou acampado na Almirante Reis, na Praça Martim Moniz, na Estação Oriente. Enquanto o expatriado à noite paga um jantar que pode chegar aos 200 euros, o imigrante come o que lhe oferece a associação de assistência aos sem-abrigo nas várias ruas de Lisboa. Mas um dos pontos que talvez mais diferenciem expatriados e imigrantes é a situação jurídico-migratória, já que expatriados, quase sempre, vêm com um visto colado ao passaporte e uma entrevista marcada na AIMA (Agência para Integração, Migrações e Asilo, sucessora do SEF), ao passo que muitos imigrantes estão à espera de que seja aceita a manifestação de interesse que fizeram em 2022 e 2023.

Após muitos meses de expectativa, em 29 de outubro de 2023, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) foi extinto, com a promessa de melhorar o atendimento ao imigrante e de regularizar em pouco tempo os milhares de requerentes de autorização de residência. Passados dois meses e meio, a situação não só não melhorou como piorou. No início de 2023, o governo começou a emitir a residência CPLP para os nacionais de países lusófonos, uma folha de papel concedida a quem havia feito manifestação de interesse até o final de 2022, mas que não é reconhecida pelos outros países da União Europeia, o que impossibilita viagens pelo espaço Schengen. A consequência foi uma reclamação formal da UE contra Portugal e a suspensão da emissão do documento.

Desde que foi implementada, a AIMA ainda não mostrou a que veio. Ao contrário do que ocorria com extinto SEF, agora é possível falar com um atendente ao telefone, mas para ouvir que as vagas para entrevistas só irão abrir quando for implementado o novo sistema. Há vaga para reagrupamento familiar? Não. Há vaga para renovação de título de residência? Não. Há vaga para solicitação residência permanente? Não. Há vaga para estudantes do ensino superior? Não. Há vaga para menores? Não. A resposta é invariavelmente a mesma: Não. Há previsão de abertura de vagas? Não.

Após tantos nãos, o desavisado pode tentar mandar um email a solicitar agendamento para um miúdo sem documentos. Dessa vez, a resposta não será "Não". Ela será: “Falha na entrega a estes destinatários ou grupos.” E, enquanto isso, o imigrante documentado não consegue reagrupar a família, o marido da cidadã portuguesa tenta há dois anos renovar o cartão de residência sem sucesso, e o miúdo segue sem autorização de residência e sem número de utente, já que a funcionária do centro de saúde recusa-se a atribuir número de utente a imigrantes sem autorização de residência.

O expatriado tem seguro de saúde, não precisa dele. Morasse o imigrante em outra freguesia, talvez conseguisse, pois sabemos que o serviço público prestado varia de acordo com a pessoa que atende. Outro dia recebi uma mensagem de WhatsApp onde via-se o mapa de Portugal e a frase: “O padrão é não ter padrão.” Pois.

A verdade é que os imigrantes, responsáveis pelo saldo positivo da segurança social, pela reversão da queda populacional no país, têm muitos deveres, mas muito poucos direitos. Há, em Portugal, em pleno 2024, milhares de pessoas a viver à sombra, sem acesso à saúde, muitas vezes exploradas e com medo da repatriação e da xenofobia, essa que atinge imigrantes, mas não atinge expatriados. De quem reclama que o estafeta fala hindi, mas não reclama da ementa em inglês.

Mas, afinal, qual é a improvável convergência? No dia 14 de janeiro, o senhor André Ventura, que antes tinha como alvo prioritário os ciganos e agora reclama dos imigrantes, prometeu reverter a extinção do SEF. Quase concordei, até cair em mim. Mas algo é inegável: o SEF, ao menos, respondia aos emails.

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