Este “urso-unicórnio” vive dentro de Andrei Bessa. E está prestes a sair

O performer Andrei Bessa espelha nas suas criações aquilo que é — algo entre a suavidade e violência, tendo como centro o corpo gordo. Para descobrir no festival Imersão, em Lisboa, neste sábado.

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Andrei Bessa vai apresentar Pra não caber no mundo no festival Imersão, em Lisboa, no sábado Daniel Rocha/PUBLICO
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Há um ser mitológico a viver dentro de Andrei Bessa. O performer chama-lhe “urso-unicórnio” e serve vários propósitos. É a pele que veste antes de subir ao palco. É onde abraça a sua identidade, onde vive no seu corpo (gordo —​ e sem desculpas), onde se questiona. “O meu trabalho, por enquanto, se dá na tentativa de inventar esse ser junto ao público”, explica em entrevista ao P3. Um ​“urso-unicórnio, uma besta-fera que mostra como Andrei é “suave e violento ao mesmo tempo”.

Há dois anos, quando o performer de 36 anos chegou a Portugal, vindo de Fortaleza, no Nordeste do Brasil, fez as malas “sem perspectivas” de ficar em Lisboa. Foi no pico da pandemia e vinha para cá com um propósito claro: fazer um curso no Fórum Dança. “Fui-me apaixonando por Lisboa. Faz todo o sentido continuar aqui, criando aqui, fazendo alguns laços, descobrindo novas formas de pensar e de fazer”, afirma.

Aqui encontrou uma certa segurança —​ a possível para um profissional da arte —​, mas também uma ânsia de criar, de se “manter em chamas, ardendo”. A vinda para Portugal marca um ponto de mudança nas suas criações. O corpo, que assumidamente sai do estereótipo do de um dançarino, passou a estar em destaque.

“Um corpo gordo não cabe no desejo público”

No Brasil, começou cedo no mundo das artes. Na infância, destacava-se na matemática e olhava para o mundo das artes como algo a “descodificar”. Quando entrou no mundo do teatro, apaixonou-se. Começou com os clássicos e foi avançando para as produções próprias. Contudo, como trabalhava sobretudo com colectivos, nos espectáculos, o seu corpo saía destacado, mas nunca no centro.

“[Quando cheguei a Lisboa, sozinho], eu sentia que o meu corpo pedia urgência, já tinha muito tempo que eu o deixava na periferia da criação porque olhava para o todo, para o colectivo”, explica. “Confesso que por estar sempre em colectivo, essa questão era colocada de lado, nunca vinha ao centro e eu pensava muito pouco nela.”

Foi com os primeiros solos que a descobriu. Do público, o que sente é principalmente curiosidade: “Olhar para a gordura para algo que é o centro do movimento, da dramaturgia, do estético, tem gerado curiosidade, porque na sociedade em que vivemos a gordura é um excesso que deveria estar fora. A gordura normalmente tenta ser disfarçada pelo figurino, tenta ser algo a não ser tocado, porque parte da sociedade acha que a gordura é sinónimo de doença ou de feio. Então, trazer um outro olhar para essa gordura como uma potência de força, de movimento gera curiosidade”, acredita.

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"Urso-unicórnio" de Andrei Bessa Miguel Miguel

A génese do ​urso-unicórnio

O corpo é um dos fios condutores do seu trabalho actual. E uma das razões para ter criado um ser mitológico a que chamou ​urso-unicórnio. “Como um corpo gordo dentro da comunidade gay, eu habitava muito a periferia no dia-a-dia. Porque, normalmente, um corpo gordo não cabe no desejo público, as pessoas não falam que desejam um corpo gordo”, explica.

Já existia um grupo dentro da comunidade gay para os homens gordos e peludos —​ os ursos (ou bears). Mas ainda que Andrei se tenha sentido seguro nesse grupo, também se sentiu num “espaço fechado”. A ideia e a imagem de masculinidade que o grupo passava não o abraçava: “Todo mundo gay está falando que eu sou um urso, mas eu não sou esses ursos. Eu não sou esse urso tradicional, eu sou um urso colorido. Pensei talvez eu seja um ‘​urso-unicórnio’. Foi um pouco de provocação, mas isso vive na minha cabeça há muito tempo.”

Foi aí que nasceu a ideia do ​​urso-unicórnio, que brinca com a dicotomia entre a violência e a suavidade e, no caminho, tenta lançar luzes sobre outras formas de masculinidade. “É pensar no urso como essa besta-fera que foi caçada durante muito tempo, mas que também é conhecido como uma mãe que cuida dos seus filhotes. E o unicórnio, que normalmente está no oposto, mais do suave, do cute, mas que é uma besta, um animal com um chifre enorme, um animal feio, um bode”, explica.

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Andrei Bessa brinca com a dicotomia entre a violência e a suavidade Daniel Rocha/PUBLICO

Pra não caber no mundo, o resultado da residência artística Imersão

No festival Imersão, Andrei vai encarnar o ​​urso-unicórnio e tocar em vários dos temas que norteiam a sua carreira. Pra não caber no mundo, espectáculo que pode ser visto no sábado, às 21h, no Teatro Ibérico em Lisboa, é o resultado dos vários caminhos por onde podia ter seguido quando se propôs fazer o seu último projecto, Urro, fruto do curso no Fórum Dança. Dessa pesquisa, “muita coisa ficou de lado nas gavetas”, e aproveitou a desculpa do Imersão para mergulhar no material que ficou por usar.

Levou esse material para a residência artística do festival, sob orientação do coreógrafo Marco da Silva Ferreira, cujo trabalho, confessa, não conhecia antes da formação —​ o que até foi benéfico para eliminar a distância entre os dois, admite. Inscreveu-se devido ao tema das residências, “360º de pele”. “Na minha opinião, tinha tudo a ver com a minha pesquisa”, afirma.

No espectáculo que criou ao longo de cerca de oito semanas, “usa três materiais da pesquisa anterior” e apresenta “uma diversidade de estéticas e possibilidades diferentes”, partindo “do ser mitológico do unicórnio” e da sua própria experiência.

Numa das partes do espectáculo, usa um chifre que pediu ao pai para lhe trazer do Brasil —​ depois de os dois terem posto um ponto final a anos de afastamento, ditado por divergências políticas. “Quando vim para Portugal, eu decido me reaproximar dele e ele me pergunta o que quero trazer. Eu falo um chifre —​ ele não sabe da minha pesquisa do unicórnio, mas eu já sabia”, recorda.

“Por ser do interior do Ceará, um estado muito nordestino, ele me dá um chifre real de um boi (que já tinha sido abatido, não foi morto para isto). É um chifre sem tratamento, muito bruto, muito grande, muito viril. Eu danço com esse chifre, eu tento colocar na minha cabeça. Tento me metamorfosear em um unicórnio, mas também misturando esse elemento biográfico, narrativo, pessoal, que é a minha não relação com o meu pai, que é uma figura masculina na minha vida.”

Daqui, seguimos para a segunda parte, um espectáculo de burlesco, que trabalha o lado da feminilidade sem ultrapassar as fronteiras do masculino, descreve. “E, por fim, eu faço uma cena mais poética, de sobrevivência, de mitologia”, afirma. “São três vias completamente diferentes de performance no mesmo trabalho, que não cabem no mesmo trabalho, mas que vão conviver juntas”, conclui. “Pode ser que, no futuro, esses materiais sejam três espectáculos diferentes. Ou pode ser que permaneçam assim, entrelaçados uns nos outros.”

Para sábado, diz-se nervoso, mas um nervoso bom: “Porque estou trazendo um material muito íntimo. Olho para a fragilidade do meu corpo e tiro força daí”, concretiza.

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