Palavra de Francisco e equívocos

Será que “todos” em Portugal entendem a plenitude e o alcance da mensagem deste Papa Francisco, que é o centro da força católica de hoje?

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É possível separar a satisfação com a forma como decorreu a organização da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) da reflexão sobre aquilo que o Papa disse nos primeiros discursos, sobre a cultura do entretenimento que venceu o jornalismo que esteve ausente na semana passada. Começa a ser essencial, aliás.

Até porque, mesmo para alguém que saiu de Lisboa entre quinta-feira e domingo, rumando a Odeceixe e deparando-se dia e meio depois com vários fogos na nossa sagrada costa vicentina e alentejana que não mereceram a atenção devida das televisões ou declaração de alerta do Governo, a bebedeira coletiva e o culto do espetáculo sem critério tornaram-se exasperantes. Nisso fomos demasiado saloios para quem lia, via e ouvia o constante enaltecimento das multidões pelo simples facto de o serem.

Seria preciso alguma contenção nessa repetição futebolística, porque a fé não pode e não deve ser reduzida a isso. Pelo contrário, importa recuperar a essencialidade da fé como algo que transcende a superficialidade e efemeridade dos fenómenos de massa, visão da qual Francisco certamente comunga. E quantos ultracatólicos da linha contrária à do Papa não se referiam a uma suposta maioria que estivera silenciada sem que se conseguisse entender bem o alcance dessa visão num país composto maioritariamente por católicos?

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JMJ terá reunido milhão e meio de jovens Nuno Ferreira Santos

A Jornada Mundial da Juventude teve esta adesão entre os jovens porque o Papa é quem é, diz o que diz desde 2013 e age em grande medida de acordo com isso. Portugal foi naturalmente o prolongamento disso tudo, com boas e bem conjugadas intervenções. A forma como Francisco recebeu e ouviu as vítimas dos abusos sexuais, para depois voltar ao tema já no avião de regresso a Roma, reforçando a necessária responsabilização de quem soube e não denunciou, é o contraponto evidente a uma Igreja portuguesa que quis mandar o tema para debaixo do tapete e que, ao que parece, nem o evocou nestes dias.

Os apelos do Papa à ação climática e à integração completa dos imigrantes na Europa não se coadunam minimamente com uma linha de extrema-direita. Tão pouco com quem pouco procura que nas áreas onde ainda não é tão manifesta a urgência do combate às alterações climáticas não se seja mais exigente.

Foi a direita empresarial, mas também política, que deixou que estas questões se tornassem uma causa das esquerdas. A apologia que este Papa faz da pessoa, da sua centralidade e essência única, o derrube dos dogmas bafientos e o corte com um lado mais totalitário, na interpretação e vivência da Fé, distingue-o. Não existe qualquer dúvida relativa a isso, que me recorda o papel que, durante dois anos, vi a Igreja Católica desempenhar na Guiné-Bissau e na África Ocidental.

Sensibilizou-me particularmente o modo como Francisco citou Sophia em dois discursos, mas foi mais demonstrativo da sua atitude revolucionária tê-lo feito também em relação a Saramago, alguém que era comunista e que tanto disse e escreveu contra alguns aspetos da Igreja. “Todos, todos, todos” revela uma abertura que é claramente a antítese da extrema-direita, do Chega, mas que também rompe com as "missas" do passado da direita democrática mais reacionária.

Será que "todos" em Portugal entendem a plenitude e o alcance da mensagem deste Papa Francisco, que é o centro da força católica de hoje? Para usar a expressão de que tantos gostam de aplicar por tudo e por nada, esta talvez seja a pergunta que o verdadeiro e camuflado "politicamente correto" não gosta que se faça.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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