A Europa terá de escolher

Os limites de 3% de défice e 60% de dívida não são compagináveis com as prioridades europeias que assumimos e com a necessidade urgente de transformarmos as nossas economias.

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Já nos habituámos ao pouco espaço que, infelizmente, a política europeia ocupa na agenda mediática e política do país. Enquanto nos últimos meses nos entretemos com os casos políticos do momento, a nível europeu decorre uma discussão de enorme relevância para o futuro da Europa, de Portugal e, já agora, do planeta. Trata-se do regresso e da revisão das regras orçamentais europeias.

Depois de uma suspensão motivada pelos constrangimentos provocados pela pandemia e pela invasão da Ucrânia, com aumentos significativos de despesa por parte dos Estados, as regras voltam a estar em vigor a partir de 2024.

O regresso destas normas ressuscitou o velho debate entre os fundamentalistas da consolidação orçamental, os “frugais”, e aqueles que defendem regras mais flexíveis, que acomodem os contextos específicos de cada país e os investimentos necessários para enfrentar alguns dos desafios do futuro.

Apesar das divergências entre os Estados-membros e depois das lições aprendidas com a crise das dívidas soberanas, parece ser consensual que as regras atuais não servem. Foi neste sentido que a Comissão Europeia apresentou uma proposta que tenta conciliar regras comuns de consolidação com planos feitos “à medida” de cada Estado.

No passado mês de abril, o think-tank New Economics Foundation divulgou um relatório no qual evidencia que, com a aplicação das novas regras propostas pela comissão, apenas nove dos 27 Estados-membros serão capazes de efetivar os investimentos necessários para atingir os objetivos climáticos da UE. Tanto as normas propostas como as normas em vigor impedem o cumprimento dos objetivos estabelecidos no Pacto Ecológico Europeu e o cumprimento dos compromissos assumidos pela UE a nível internacional. De acordo com o estudo, só mesmo quatro países teriam capacidade orçamental para realizar os investimentos necessários para cumprir algumas das metas mais ambiciosas estabelecidas no Acordo de Paris.

Esta análise torna evidente que os limites de 3% de défice e 60% de dívida não são compagináveis com as prioridades europeias que assumimos e com a necessidade urgente de transformarmos as nossas economias. É fundamental proteger o investimento público e criar espaço orçamental para promover o desenvolvimento sustentável e realizar as necessárias transições. Precisamos de regras mais flexíveis ou de mecanismos que retirem do cálculo do défice e da dívida este tipo de investimentos.

Diria que estamos mesmo perante um momento definidor do futuro do projeto europeu. O último relatório do IPCC é claro no diagnóstico, não temos muito tempo para agir. A Europa precisa de investir em transição energética, economia circular, promoção da biodiversidade, proteção dos ecossistemas e adaptação às alterações climáticas. Estes investimentos essenciais e estratégicos não podem ficar reféns de um garrote orçamental.

Com esta opção de manter o nível de endividamento arbitrariamente baixo, a UE afasta-se dos países do G20, com previsões de endividamento bastante superiores e em alguns casos com grandes pacotes de incentivos e investimentos em curso.

Não podemos continuar a erguer grandes bandeiras europeias, se não somos capazes de criar condições para as efetivar. Se no final deste processo a prioridade da redução do endividamento suplantar os restantes objetivos, estaremos perante uma crise de valores e de credibilidade das instituições europeias.

A Europa terá de escolher entre o desenvolvimento sustentável e o fundamentalismo da consolidação orçamental.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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