Sascha Fonseca: “Tirar a fotografia de um animal é como caçá-lo com uma lente”

Em entrevista ao PÚBLICO, o vencedor do prémio Fotógrafo de Vida Selvagem 2022 admite que não se considera fotógrafo – é um activista contador de histórias, pela conservação dos animais e do seu lar.

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O luso-alemão é vencedor mais recente do prémio Fotógrafo de Vida Selvagem do Ano Sacha Fonseca/DR

Sascha Fonseca vive no centro do mundo. Filho de pai português, nasceu na Alemanha e vive, actualmente, no Dubai, mas não pára em casa. Da Sibéria aos Himalaias indianos, percorre o globo e deixa atrás de si um rasto de armadilhas fotográficas, cujos cliques contam histórias de tigres, leopardos-das-neves, ursos e, às vezes, até cães vadios que são apanhados sem querer pelos sensores de movimento.

Não se considera fotógrafo e, em entrevista ao PÚBLICO, compara o que faz a “caçar com uma lente”. Registar em imagens o “mundo privado” dos grandes felinos é apenas um passatempo, mas a verdade é que já lhe rendeu várias distinções, inclusive o prémio Fotógrafo de Vida Selvagem do Ano 2022, que anunciou este mês a imagem vencedora: um leopardo-das-neves, o "fantasma das montanhas", apanhado em flagrante pela armadilha de Sascha, enquanto o sol adormecia por trás das montanhas de Ladaque, a norte da Índia.

Neste momento, tem armadilhas fotográficas na Índia e na Sibéria, para capturar imagens de grandes felinos, cujos rostos já reconhece como os de velhos amigos. Fotografa-os para nos ensinar que, por trás dos olhos expressivos de um tigre ou de um leopardo, há uma vida que precisa de ser preservada.

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O ar majestoso do leopardo-das-neves capturado pelo luso-alemão deu à imagem um número recorde de votos Sascha Fonseca/Wildlife Photographer of the Year

Quando começa a sua história com a fotografia de vida selvagem?
Sempre me interessei por animais e vida selvagem desde a infância. Cresci numa aldeia da Alemanha, com floresta à minha volta. Não havia internet, por isso passávamos a maior parte do tempo ao ar livre, a brincar, e penso que isso me deu uma boa ligação à natureza. Mas só em 2013 é que peguei numa câmara pela primeira vez. Isto foi na minha primeira viagem. Fui a Ruanda, em África, e eu ia ver os gorilas, por isso comprei uma DSLR barata e tirei algumas fotos dos animais. A partir daí, tornou-se um passatempo.

Eu fotografo todo o tipo de animais, mas, na verdade, não sou fotógrafo. Tirar a fotografia de um animal é como a caçá-lo com uma lente. Eu nunca aprendi fotografia formalmente. Tudo o que faço, ensinei-me a mim próprio, e não me considero um fotógrafo profissional.

Fiz muitos safaris e já fotografei muito animais, mas, no final, percebi que a maioria das fotografias tinha o mesmo aspecto. Todos tiram a mesma fotografia de um leão, então tornou-se um pouco aborrecido. Se eu quiser uma boa fotografia de um leão, posso simplesmente pesquisá-la no Google e não preciso de ir lá pessoalmente. Por isso, procurei algo um pouco mais único e foi isso que me levou às armadilhas fotográficas. Ganhei uma grande paixão por isso.

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Os primeiros trabalhos de Sascha Fonseca com armadilhas fotográficas foram em África. Esta imagem foi capturada no Quénia Sascha Fonseca

O que torna as armadilhas fotográficas tão especiais?
As armadilhas fotográficas fornecem uma perspectiva que ninguém tem. Podemos colocá-las e elas fotografam o animal no seu habitat, no seu mundo privado. Além disso, uma armadilha fotográfica pode funcionar durante 24 horas, sete dias por semana, e os grandes felinos, especificamente, são mais activos à noite. Se sair durante o dia para fotografar um felino, ele está normalmente a dormir ou esparramado ao sol. Queremos fotografá-los à noite, a caçar e a patrulhar. Isto é o que uma armadilha fotográfica pode ajudar-nos a alcançar. Por isso, agora estou a especializar-me em armadilhas fotográficas. Faço algumas fotografias convencionais, mas é assim que passo a maior parte do meu tempo.

Diz não ser um fotógrafo profissional. Isto é um passatempo?
Sim. Infelizmente, não dá para ganhar muito dinheiro com fotografia. Na verdade, até é bastante caro, uma vez que eu ainda estou a financiar tudo. Mas pronto, as outras pessoas desenham ou jogam golfe! Para mim, isso seria demasiado aborrecido e preciso de ter algo que me permita andar por aí. Eu trabalho para uma grande empresa. Vivo no Dubai e isso permite-me ir a todo o lado, porque o Dubai está mesmo no centro do mundo. Posso estar em Nairobi em três horas, posso estar na Índia em uma hora. É um local agradável, que torna isto possível.

Que animais já conseguiu apanhar na sua armadilha?
Todos os tipos de animais. Só no projecto do leopardo-das-neves, tenho capturado muitos animais diferentes. Apanho muitas vezes as presas do leopardo-das-neves: ovelhas, martas, pássaros… Apanho também muitos falsos cliques, porque a armadilha tem um sensor de movimento e de calor. Cada movimento activa a armadilha, por isso a maioria das minhas fotografias são falsos cliques e não há nada nelas. Às vezes, obtemos outros animais; outras vezes, falsos cliques e, de vez em quando, apanhamos um leopardo-das-neves e só temos de rezar que esteja tudo no sítio certo para que a fotografia funcione.

Tenho muitas imagens completamente escuras. Isto significa que havia algo, mas não sei o quê, porque o flash não estava a funcionar. Portanto, saem muitas fotos misteriosas em que nunca se sabe o que é. Uma vez, apanhei até um cão vadio de uma aldeia próxima. Vê-se todo o tipo de coisas.

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Armadilhas fotográficas permitem obter perspectivas únicas, diz o fotógrafo Sascha Fonseca

Como é que um fotógrafo decide onde colocar a armadilha?
É tudo em função do animal. No projecto do leopardo-das-neves, tive armadilhas em vários locais e movia-as frequentemente de um lado para o outro, sempre em locais onde esperávamos que eles aparecessem. Trabalhei com muitos guardas-florestais e cientistas que me ajudaram com isso e me levaram a lugares que poderiam ser bons – onde se encontra pegadas, onde eles foram vistos antes. Depois, põe-se lá a armadilha e espera-se. É preciso muita paciência. Por vezes, não se consegue nada durante semanas ou mesmo meses. Mas eu tive sorte: consegui a minha primeira imagem de um leopardo-das-neves em poucos dias.

A fotografia que submeteu ao prémio Fotógrafo de Vida Selvagem do Ano acaba por ser uma num milhão.
Obter um leopardo-das-neves já é difícil. Conseguir um leopardo-das-neves na neve é ainda mais especial! Li algures que eles não gostam de neve ou que tentam evitá-la. Logo, encontrar um leopardo-das-neves na neve ao pôr-do-sol é espantoso. O flash estava lá, ele olhou para o flash e a posição era perfeita! Eu diria que é uma num milhão. 50% é preparação e 50% é sorte. As armadilhas fotográficas podem ser muito frustrantes, mas também podem ser muito gratificantes. Este foi um momento muito gratificante. Às vezes acontece-me ter boas fotografias, mas depois estão desfocadas ou a lente está suja ou o flash não está a funcionar, o animal está a desviar o olhar... Ter uma fotografia como esta é de loucos e fico contente que as pessoas tenham gostado. Isto significa muito para mim. Motiva-me a continuar.

Quando a vi pela primeira vez, soube que iria ganhar algum prémio. Era tão única e tão bonita. Eu já tinha ganho alguns outros concursos, mas este é o concurso de fotografia de vida selvagem mais prestigiado. É como ganhar os Óscares!

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Numa outra versão da imagem submetida a concurso, o leopardo-das-neves olha directamente para a câmara Sascha Fonseca

Durante o projecto, fez várias imagens do leopardo-das-neves. Qual foi a sua primeira reacção quando conseguiu fotografar um pela primeira vez?
É como se fosse Natal! Não se consegue descrever. Quando se vê as imagens, nem dá para acreditar. Quando fiz isto pela primeira vez, não sabia se iria funcionar. Construí o meu próprio equipamento, as minhas próprias caixas – porque é preciso proteger a máquina fotográfica –, o meu próprio flash. Estava muito frio e eu não sabia se a bateria iria sequer aguentar a temperatura. Mas funcionou tão bem que, embora o plano original fosse manter a armadilha durante algumas semanas, foram três anos!

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Amante de natureza desde a infância, Sascha trabalha com especialistas e guardas-florestais Sascha Fonseca

Agora que o trabalho nos Himalaias indianos terminou, que outros projectos tem na manga?
Também estou a tentar fotografar leopardos-das-neves num local diferente, mas ainda no Norte da Índia. Tenho uma armadilha fotográfica que está a trabalhar enquanto falamos. Agora é Inverno e está a nevar lá, por isso espero ter a sorte de conseguir outro leopardo-das-neves na neve.

O meu segundo projecto é na Sibéria, para o tigre siberiano. Também está a decorrer ainda. Este é um pouco mais desafiante porque é numa zona muito remota e selvagem. Não se pode lá ir todos os dias para verificar as câmaras, por isso treinei algumas pessoas e até cientistas para lá irem sempre que possível para mudar as baterias, resolver problemas e fazer manutenção. Mas é difícil ir lá porque a neve é tão muito profunda e, quando derrete, fica tudo lamacento. No Verão, está repleta de carraças e moscas. Por isso, as quatro estações do ano são um pouco extremas. E andamos perto de um dos maiores predadores do mundo, o tigre siberiano. É o maior felino do mundo e este é o meu projecto mais desafiante até agora.

Também tenho planos para outro trabalho dedicado ao leopardo-das-neves que está para breve, mas ainda não quero revelar detalhes.

Mencionou várias vezes que trabalha com especialistas. Quem são essas pessoas?
A maioria são guardas-florestais que trabalham nos locais. Também já trabalhei com um cientista na Sibéria. Ele é especialista em ursos, mas os ursos e os tigres vivem juntos, por isso é perfeito. Ele conhece a área, é mesmo muito útil e eu treinei-o para manusear a armadilha fotográfica. No projecto do leopardo-das-neves na Índia, foi uma pessoa que vive lá. Eu treinei-o, ensinei-lhe tudo para que ele pudesse fazer o básico. Agora, ele quer fazer o mesmo que eu e, por isso, terminei o trabalho com ele e mudei-me para outro local.

É uma mistura. Por vezes, são as pessoas locais que estão interessadas em ajudar, ou são os guardas-florestais, ou são os cientistas. Para o meu próximo projecto, estou a trabalhar com uma grande organização não-governamental, o me deixa entusiasmado. Eles têm guardas-florestais. Esses são os melhores, porque conhecem os melhores locais e os animais. Não dá para sair do escritório de câmara na mão e adivinhar onde a colocar. Os meus projectos nunca são a solo e é sempre um trabalho de equipa.

Qual é o papel da fotografia da vida selvagem na conservação da biodiversidade?
Todos estes animais, infelizmente, estão sob pressão. Todos os grandes felinos enfrentam os mesmos problemas: estão a ser caçados e as pessoas estão a destruir a casa deles. É sempre o mesmo problema, mas ninguém fala disso. Algumas pessoas nem sequer sabem que estes animais existem! Por isso é que eu acho que mostrá-los de uma forma agradável permite que as pessoas se liguem a eles e cuidem deles. E, se queremos salvar o animal, temos de salvar a presa do animal e temos de salvar a terra onde o animal vive. Estas três coisas estão ligadas e precisam uma da outra. Um tigre siberiano ou um leopardo-das-neves não precisam de muito. Precisam de água, precisam do seu território, precisam de presas para caçar e precisam de ser deixados em paz.

Mas, voltando à pergunta, eu não faço isto por dinheiro. Só o faço para mostrar estes belos animais ao mundo. Eu nunca publico a fotografia de um animal sem fazer um comentário. Tento sempre contar uma história e consciencializar.

Se se cortarem todos os pinheiros, não há pinhas. Se não há pinhas, não há javalis. Se não há javalis, não há comida para os tigres. Está tudo ligado. E eu espero fazer a minha pequena parte. Se alguém quiser usar as minhas fotografias para espalhar esta mensagem, é livre de o fazer. É possível chegar às pessoas e fazer passar uma mensagem, obter apoio. E há também que pressionar os governos a agir, a proteger os animais, a proteger a terra, a aprovar legislação, a financiar os guardas-florestais.

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Em várias fotografias, é possível notar que o animal interage com a armadilha. Aqui, o leopardo-das-neves está a reagir aos sons da máquina Sascha Fonseca

Atingiu um número recorde de votos. Estará o público a valorizar mais esta forma de mostrar o mundo?
Estou muito contente com a participação tão activa do público. Pessoalmente, do meu lado, família, amigos e colegas, todos tiveram de votar! Também divulguei no Instagram e mobilizei algumas pessoas. Mas espero que sim, que haja essa valorização.

Em geral, penso que as pessoas gostam muito dos grandes felinos. Eu sou viciado em gatos grandes. Especialmente quando se faz isto a longo prazo, é possível conhecer a sua beleza. Começamos a identificá-los e um é mais tímido, o outro é mais brincalhão... Vemo-los crescer. Para o projecto do leopardo-das-neves, eu comecei em 2019 e terminei em 2022. Por vezes, fotografo os mesmos indivíduos, e vê-se que eles crescem. Fico sempre tão feliz quando os vejo! É como reencontrar um velho amigo e perceber que ele está vivo e bem. Uma vez, capturei um leopardo muito jovem. Meses mais tarde, vi-o novamente e ele estava tão grande!

Para mim, são os olhos expressivos e as personalidades. É isso que me torna tão obcecado com felinos. Eles nasceram num corpo diferente, mas têm uma personalidade como tu e eu.

É fácil reconhecer o mesmo animal após algum tempo?
Quando se passa tanto tempo a olhar para as fotos como eu, é muito fácil. Todos eles têm rostos e padrões únicos. No início, quando não os conhecemos muito bem, identificamo-los pelos padrões porque são todos diferentes, como uma impressão digital. Mas, com o passar do tempo, comecei a reconhecê-los pelos rostos. Sei quem são só de olhar para eles. Para mim, os felinos não são diferentes das pessoas.

Se pudesse escolher uma das restantes finalistas do Wildlife Photographer of the Year para ser a vencedora, qual escolheria?
Por acaso, pensei muito nisso. Todas as fotografias são boa competição. Eu estava mesmo a suar! Todas elas têm alguma característica interessante e é por isso que todas chegaram à final, mas tenho favoritos.

Houve uma foto que me chocou muito, porque nunca tinha visto algo assim: o leopardo que matou o macaco e, na foto, o bebé estava pendurado na mãe. Este não é o tipo de fotografias que tiro. Gosto de mostrar coisas bonitas. Aquela fotografia é muito boa do ponto de vista comportamental, mas foi uma das coisas mais horríveis que alguma vez vi na vida. Outra que adorei foi a fotografia dos três macacos abraçados na neve. Adoro ver animais na neve e essa era linda. Provavelmente não é assim tão difícil de conseguir, mas as cores e o momento estão muito bonitos. Há também uma de um urso polar bebé num campo de flores – tão especial! São estas as que mais me marcaram, mas todas as imagens são boas por diferentes razões e a beleza da fotografia de vida selvagem é mesmo essa.

É tão difícil escolher um vencedor! É por isso que ganhar este prémio é tão especial, porque eles pediram a opinião do público e, com milhares de pessoas, não dá para errar. Um júri pode ser tendencioso, mas se se perguntar ao público, é diferente. Tenho recebido e-mails provenientes de todos os cantos do mundo com reações positivas! É avassalador.