“O mundo ainda não foi capaz de se juntar” contra a covid-19, critica Guterres

O secretário-geral das Nações Unidas criticou a falta de união para resolver o “drama mundial terrível” que é a pandemia. Em entrevista à RTP esta quinta-feira abordou, ainda, o diálogo com os taliban no Afeganistão e a falta de financiamento da ajuda humanitária em Moçambique.

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Reuters/ANDREW KELLY

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, quer 40% da população mundial vacinada contra a covid-19 até ao final do ano, e 70% até meados do próximo. Para isso, “aqueles que têm poder deveriam juntar-se para poder resolver este drama mundial terrível”, advertiu em entrevista esta quinta-feira à noite à RTP.

O seu apelo foi “um grito de alarme”, resultante da sua insistência em propor a criação de uma “task force de emergência”, entre países que já produzem vacinas e países que o poderiam fazer, para a preparação de um plano global de vacinação. “Obrigaria a aumentar a produção de vacinas e ao mesmo tempo garantir uma distribuição equitativa”, calculou.

Mas tal ainda não aconteceu, criticou: “Continua cada um a agir por si. Tivemos o açambarcamento e o nacionalismo das vacinas, e agora temos a diplomacia das vacinas. Mas a verdade é que o mundo ainda não foi capaz de se juntar.”

Por isso, para atingir esta meta de vacinação até ao final do ano, os países têm de colaborar num “conjunto de recomendações muito claras sobre o que é preciso fazer" na partilha de vacinas. “Há uma coisa que a Organização Mundial da Saúde não tem, que é poder. Poder para impor que os direitos de autor sejam levantados, ou que um país dê vacinas a outro. Tem liderança, mas não tem poder. Infelizmente, alguns dos que têm poder não têm demonstrado liderança”, atirou.

António Guterres deixou claro que, sem a vacinação de todos, continuará a haver vulnerabilidade perante o vírus, caso surja uma nova variante. “São uma ameaça ao fim da pandemia, todos aqueles que fazem uma campanha activa para que as pessoas não se vacinem”, sublinhou, acrescentando que Portugal é um caso exemplar na vacinação por ter união nos meios políticos e de comunicação.

Dialogar com “terroristas"

Questionado sobre se é razoável e coerente defender o diálogo com uma organização considerada terrorista, o secretário-geral da ONU admitiu que “muitos erros foram cometidos” pelo mundo ocidental no Afeganistão, culminando na tomada de poder pelos taliban — um facto que “não pode ser ignorado porque há milhões de afegãos numa situação humanitária desastrosa”.

“Decidi que devíamos entrar em contacto com os taliban. No plano humanitário é nosso dever falar com toda a gente. Os princípios humanitários obrigam a falar com todos os actores em qualquer situação de conflito”, justificou. Na ordem do dia estiveram dois assuntos: condições de protecção para a ajuda alimentar e humanitária, sem discriminação; e o respeito de um conjunto de direitos básicos, nomeadamente o direito das mulheres à educação e ao trabalho.

Promessas que, segundo António Guterres, os taliban não estão a cumprir. “A verdade é que estamos a ver muitas situações no terreno que desmentem essas promessas. E, por isso, um dos pontos essenciais na nossa insistência no diálogo com os taliban é explicar que isso tem de mudar e que os direitos das mulheres e jovens são um elemento fundamental para poderem ter o reconhecimento que eles pretendem e para poderem ter o apoio por parte da comunidade internacional de que necessitam, e de que o povo necessita”, adiantou.

Falta de financiamento para a ajuda humanitária

Em relação à possibilidade de a ONU intervir em Moçambique, dado o aumento exponencial de grupos terroristas que já levou o governo a pedir ajuda militar externa, António Guterres esclareceu que a ONU tem apenas forças de manutenção da paz, e que as intervenções anteriores foram feitas por parceiros. 

“O que temos proposto é a criação de uma força africana que possa ter um apoio das Nações Unidas, através de uma resolução ao abrigo do capítulo sétimo e com um financiamento assegurado através das contribuições obrigatórias”, disse. Caso isso venha a concretizar-se, o secretário-geral diz estar inteiramente disponível para “levantar junto do Conselho de Segurança das Nações Unidas a necessidade de apoiar devidamente essa força”.

Outra frente atacada por António Guterres durante a entrevista foi a falta de financiamento que tem colocado em causa os programas de ajuda humanitária. A multiplicação de situações em que a a ajuda humanitária é essencial tem levado a que os apelos de mobilização de recursos internacionais estejam a ter uma resposta menor do que o necessário.

“Concretamente em Moçambique, estaremos provavelmente a metade do plano da resposta humanitária que tinha sido preparado, em relação ao financiamento recebido. É por isso que várias agências se vêem na obrigação, em vários pontos do mundo, de reduzir os seus programas, por completa falta de recursos”, exemplificou.

E avisou: “A falta de ajuda humanitária é ela própria uma forma de ajudar os terroristas.” 

Perante os atrasos “muito significativos” nos pagamentos de alguns estados-membros às Nações Unidas, a organização teve de implementar medidas de “controlo de despesas ao milímetro” para conseguir cumprir com o pagamento de salários e garantir o seu funcionamento.

“Temos cerca 15% de vagas de pessoal não preenchidas, porque não temos capacidade para pagar a um quadro de pessoal completo”, revelou, acrescentando que existem também problemas financeiros nas operações de manutenção de paz. “O que tem acontecido é que as Nações Unidas ficam a dever aos países que contribuem com as suas tropas até terem dinheiro para lhes pagar”, completou.

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