O Estado no banco da justiça privada

No caso Bragaparques, a decisão arbitral que condena uma entidade pública a pagar cerca de 160 milhões de euros não é sequer conhecida na íntegra. Os cidadãos ignoram os argumentos esgrimidos, os aspectos ponderados ou o raciocínio empregue pelo tribunal arbitral.

O caso que opõe a Bragaparques ao Município de Lisboa motiva renovada reflexão acerca da participação do Estado em formas de justiça privada.

Portugal vem generosamente admitindo a arbitragem administrativa enquanto mecanismo de resolução de conflitos entre entidades públicas e privadas. Litígios que seriam julgados por magistrados dos tribunais administrativos são-no por árbitros nomeados pelas partes ou instituições arbitrais. Foi uma opção clara pela privatização da justiça de direito público. Neste mercado jurisdicional, as normas do direito administrativo são aplicadas por vários actores (entre professores de Direito e advogados).

O discurso académico vê aqui “pioneirismo” e “inovação”, embora continuemos relativamente sós em submeter este tipo de conflitos com o Estado a uma justiça privada. Acresce que a consagração da arbitragem administrativa não foi imediatamente acompanhada das cautelas que se impunham por força do interesse público. Inexiste uma disciplina legislativa especialmente desenhada em razão do carácter estatal de uma das partes envolvidas. A arbitragem administrativa (sobretudo a de avultados montantes) tem decorrido sob um enquadramento regulatório de cariz privatista, como se fosse um conflito comercial.

Basta pensar que, até 2015, as partes podiam permitir que se decidisse o litígio de acordo com a equidade, subtraindo-se ao disposto pelas regras legais aplicáveis. Para além de contrário à lógica e valores do direito público, isso conduzia a que se resolvessem conflitos administrativos segundo parâmetros formulados por árbitros privados. Afectava-se, pois, o princípio constitucional da subordinação da Administração à lei.

No caso Bragaparques, a decisão arbitral que condena uma entidade pública a pagar cerca de 160 milhões de euros não é sequer conhecida na íntegra. Os cidadãos ignoram os argumentos esgrimidos, os aspectos ponderados ou o raciocínio empregue pelo tribunal arbitral. Designadamente em situações cuja solução depende da interpretação de princípios jurídicos (por natureza indeterminados e carecidos de concretização pelo julgador), esse conhecimento é essencial para problematizar a sensibilidade ao interesse público em presença ou a fidelidade ao direito administrativo.

Um pagamento indemnizatório com base numa decisão secreta entra em tensão com o modelo de Estado de Direito Democrático. A transparência e publicidade são valores em si e instrumentais de uma sociedade civil informada e vigilante das actuações do Estado e dos privados que com ele se relacionam. Entretanto, o legislador fez depender a execução de decisões arbitrais da respectiva publicação. Contudo, isso só vale desde meados de 2020 e pode nem ocorrer ante cumprimento voluntário da decisão.

Claro que a arbitragem administrativa tem vantagens ao nível da eficiência e celeridade decisórias, contribuindo para uma tutela efectiva dos direitos dos particulares mediante um sistema de resolução de conflitos plural e descentralizado. Mas, sobretudo em casos de significativo impacto orçamental, a abertura à arbitragem tem de ser acompanhada de regulação adequada: promovendo a transparência das decisões e fundamentações; conduzindo os processos preferencialmente em instituições arbitrais e não ad hoc; produzindo dados estatísticos sobre a nomeação dos árbitros, o seu histórico decisório e os custos incorridos; no limite, ampliando as vias de recurso das decisões arbitrais.

É esse o caminho para uma justiça arbitral com fundamentos, regras de operação e devido escrutínio social públicos.

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