Masculinidades sob escrutínio: o debate sobre a residência alternada
Entre 2018 e 2020, a sociedade portuguesa foi palco de um (in)tenso debate. Uma petição entregue na Assembleia da República pedia a alteração do Código Civil quanto ao “exercício das responsabilidades parentais em casos de divórcio”. Seguiu-se uma onda de contestação, por quem entendia a reivindicação como inconciliável com a proteção das vítimas da violência familiar. Porquê esta contestação? E porque é que o debate continua em aberto?
Uma petição e uma carta aberta inauguraram um debate que ocupou o espaço político e mediático durante mais de dois anos. A primeira, da iniciativa da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, foi submetida à Assembleia da República no verão de 2018. Solicitava a alteração do Código Civil “no sentido de estabelecer a presunção jurídica da residência alternada” em situações de divórcio ou separação, ou seja, a partilha mais equilibrada, entre mães e pais, “do tempo de residência e do envolvimento continuado nos cuidados, na educação e na vida quotidiana dos seus filhos e filhas”. A segunda, a carta aberta, subscrita ao início por 17 entidades, pedia o contrário: não dar “provimento à pretensão constante da petição”. Invocava a “dimensão epidémica” da violência doméstica e do abuso sexual intrafamiliar de crianças e jovens. E a dificuldade dos tribunais de família e menores em acautelarem estas situações colocando as vítimas à mercê dos agressores.
À Assembleia da República coube legislar e tentar resolver o mal-estar instalado. Foram apresentadas várias iniciativas legislativas: os projetos de lei do PS, PAN e BE, mais abertos à pretensão da petição de passar a residência alternada a regime preferencial; e os do PSD e CDS-PP, menos recetivos. Mas a que passou na 1.ª Comissão e que foi votada no Parlamento foi a proposta de alteração de última hora, de “cedência à direita”, acordada entre PS e PSD. A 4 de novembro era alterado o Código Civil, estabelecendo-se “as condições em que o tribunal pode decretar a residência alternada”. Passou a possibilidade e não a regime preferencial. Para os apoiantes da petição, a alteração foi uma “oportunidade histórica que se perdeu”. Para os opositores, representou o “fim de um mito perigoso”. Para outros, foi a solução de pacificação social, um passo “pequeno e moderado”, “mais ajustado” ao momento.
Acompanhei com interesse o debate. Considero legítimas ambas as pretensões. Incentivar a residência alternada das crianças e a efetiva partilha das responsabilidades parentais após a separação conjugal, como pedia a petição. E proteger — mais e melhor — as vítimas da violência familiar das ineficácias da justiça, como alertava a carta aberta. Este é um debate tão sério quanto necessário. Fazer valer os argumentos de uma das partes não pode passar por esmagar as pretensões da outra, pelo que subscrevo a indignação que causou. O diálogo é difícil, mas não pode ser impossível, até porque a pandemia de covid-19 vem expor as feridas ainda abertas.
Por um lado, o confinamento, o teletrabalho e o ensino remoto colocam novos desafios e dilemas às famílias e em especial às famílias monoparentais e com crianças em residência alternada. Por outro lado, despertam receios sobre a violência familiar que acontece à porta fechada. Apertar a vigilância e denunciar voltam a ser apelos na ordem do dia. O Governo tem procurado dar resposta nas duas frentes, revelando que reconhece e está atento a ambas. Desde o primeiro estado de emergência que estão previstas, como exceção ao dever geral de recolhimento obrigatório, as deslocações para “cumprimento de partilha de responsabilidades parentais”. E foram criados, na mesma altura, novos canais para denunciar situações de violência familiar.
Masculinidades violentas, masculinidades cuidadoras
O que está em causa num debate, que só está fechado (por agora) na arena política? E que tanto afeta as vidas de mães e pais, de filhas e filhos?
Antes de responder faço aqui uma declaração de interesses. Não sou especialista em residência alternada ou violência doméstica. O meu olhar sobre este debate é o de uma socióloga que investiga as mudanças na vida familiar e nos papéis de género. E de coautora do Livro Branco — Homens e Igualdade de Género em Portugal (publicado em 2016), um documento com recomendações para a promoção da igualdade entre mulheres e homens que propôs “o debate público em torno do estabelecimento na lei da residência alternada enquanto regime preferencial”.
Em meu entender, o que está em causa é a coexistência de duas visões antagónicas das masculinidades. A visão da masculinidade hegemónica, representada por homens detentores de privilégios e poder, numa ordem patriarcal de género que legitima e assegura a dominação masculina nas sociedades. Com custos visíveis para as mulheres no mercado de trabalho, na atividade política, ou na sobrecarrega familiar e doméstica. E custos devastadores quando a dominação é sinónimo de violência (física, psicológica, sexual) nas relações de intimidade e dentro da família. A ideia de que os homens são, por natureza, violentos, aumenta o receio da sua interação direta, autónoma e não supervisionada com as crianças, nomeadamente em situação de residência alternada. O cerne do debate.
A outra visão é a da masculinidade cuidadora, representada por homens que reclamam para si o papel de cuidar. Seja enquanto profissionais, em atividades que requerem cuidar de terceiros e que têm sido tradicionalmente desempenhadas por mulheres, seja na vida pessoal, cuidando de irmãos ou amigos, de cônjuges ou pais idosos e, sobretudo, de filhos ou enteados. É na paternidade que esta faceta da masculinidade é mais visível. Ser pai já não é só sustentar, educar, corrigir (e, com muita sorte, brincar) como era. É também cuidar de filhos e filhas desde que nascem, algo possível graças à atual política de licenças parentais, e é ter a possibilidade de construir uma relação próxima e íntima ao longo do seu crescimento. No caso dos pais em residência alternada, é assumir, à vez, todas as responsabilidades do dia a dia. Esta pode ser mesmo uma experiência transformadora, abrindo espaço à construção de uma autonomia parental que poderia nem existir antes do divórcio ou separação.
São, portanto, as masculinidades que estão sob escrutínio neste debate. E o modo como estas são experienciadas por homens, mulheres e crianças na vida familiar.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”
Porque coexistem estas visões das masculinidades? Porque foi longo o caminho que trilhámos para resgatar mulheres e crianças de uma situação de inferioridade social, política, cultural e jurídica. Um caminho há muito ansiado pelos movimentos feministas que marcaram o século XX. Possível graças à Revolução de Abril e à construção de um Estado de direito democrático, que desmantelou a ordem jurídica patriarcal do Estado Novo, que estabelecia a desigualdade e hierarquia entre homens e mulheres, adultos e crianças, na sociedade e na vida familiar.
De facto, a Constituição de 1933 e o Código Civil de 1966 davam força de lei à ideologia de família do regime salazarista, conferindo ao homem a autoridade e o poder de disciplinar, exigir obediência e decidir “sobre os destinos da família e de cada um dos seus membros”. A violência, exercida pelo “chefe de família” sobre mulheres e crianças, era considerada tolerável, não merecendo intervenção pública.
Com o 25 de Abril mudou a situação de homens, mulheres e crianças. Primeiro na normatividade jurídica. Mais gradualmente na normatividade social. E mudou também o entendimento sobre a violência doméstica, que continua a ter mulheres e crianças como principais vítimas: crime público desde 2000, passível de denúncia independentemente da vontade da vítima, a violência doméstica passou a convocar toda a sociedade para o seu combate.
Mas almejar uma sociedade mais igualitária e menos violenta implica ir mais longe, trilhando o caminho de forma mais inclusiva. Precisamos de reconhecer que promover a igualdade de género e combater a violência são objetivos entrelaçados que não podem excluir os homens. Foi esta a mensagem que nos deixou a 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres da ONU, em 1995.
Mas também é preciso reconhecer que a violência não é exclusiva dos homens e que não têm sido só as mulheres e as crianças a sofrerem sob a ordem patriarcal que vigorou até ao 25 de Abril de 1974 e que teima em marcar biografias e a vida coletiva. Os homens também têm sido vítimas de violência, dentro e fora da família, e também têm sido penalizados em muitos domínios das suas vidas. Um deles é, sem dúvida, a perda relacional resultante do afastamento de filhos e filhas após divórcio ou separação.
Os últimos dois Censos dizem-nos que, entre 2001 e 2011, as famílias monoparentais com filhos menores aumentaram quase 50%. E que nove em cada dez eram femininas. O que significa? Que há um número crescente de pais ausentes das responsabilidades e cuidados parentais do dia a dia, ficando privados das recompensas emocionais inerentes. Do outro lado do espelho estão crianças e jovens que também perdem com este corte relacional. E mães que se veem confrontadas com a hipertrofia das responsabilidades parentais e dificuldades acrescidas na esfera económica e laboral.
Ora, esta reorganização típica da vida de mães, pais e crianças após um divórcio ou separação, nada tem que ver com cifras de violência doméstica, como poderíamos depreender do debate público suscitado pela petição e pela carta aberta. Reflete, sim, o estereótipo de género de que cuidar pertence, por natureza e mérito, às mães. O que acarreta um preconceito de género, de que os pais não sabem cuidar. Num regime jurídico do divórcio em que a regra é a residência da criança com um do progenitores, recai sobre o estereótipo e o preconceito a decisão acerca de destinos mais que certos. E isto acontece mesmo perante as profundas mudanças na paternidade, como nos conta o psiquiatra Daniel Sampaio no seu livro Dá-me a Tua Mão e Leva-me. Como evoluiu a relação pai-filho.
No rescaldo do debate
Dificilmente a construção da igualdade de género e a redução da violência nascem da omissão. Têm de estar na letra da lei. A conquista de direitos por parte de mulheres e crianças, a construção da sua dignidade social, não se fez por omissão. A conquista de direitos dos homens na parentalidade também não.
Em 1982, a revisão constitucional veio consagrar a paternidade como valor social eminente, na mesma medida e com o mesmo direito à proteção que a maternidade. É o “reconhecimento de um novo estatuto jurídico para os homens e o sinal claro, para estes, para as mulheres, para a atividade económica e para a sociedade em geral, de que o direito português recusa em entender a reprodução humana e o trabalho de cuidado que lhe é inerente como ‘uma função’ (…) das mulheres”, diz-nos a jurista Maria do Céu da Cunha Rêgo. A política de licenças parentais tem procurado ir ao encontro da igualdade entre mulheres e homens na vida familiar e na conciliação, promovendo a partilha mais equilibrada de cuidados ao bebé através do reforço da proteção da paternidade. O mesmo não se pode dizer quanto à regulação das responsabilidades parentais após divórcio ou separação, que continua aquém deste desígnio.
Quase 40 anos depois da revisão constitucional de 1982, foi dado um “pequeno passo” com a alteração do Código Civil, prevendo-se a possibilidade de o tribunal decretar a residência alternada. Será a nova “possibilidade” jurídica, que entrou em vigor em dezembro, suficiente para alterar a “mentalidade dominante” e tornar a residência alternada uma realidade mais efetiva? Mudará o statu quo, que continua a aprisionar mulheres e homens em papéis de género que lembram outros tempos? E que passa, às crianças e aos jovens de hoje, a mensagem errada sobre o que esperamos delas e deles enquanto adultas e adultos de amanhã? Gostaria de acreditar que sim, mas só o tempo o dirá.
Socióloga, ICS-ULisboa
Coordenadora do projeto PARENT – Procriação e Parentalidade em contexto de baixa fecundidade, mudança familiar e crise económica, financiado pela FCT (PTDC/SOC-SOC/29367/2017). Coautora do Livro Branco — Homens e Igualdade de Género em Portugal, elaborado no âmbito da parceria CITE/ICS-ULisboa e financiado pelo EEA Grants