Um retrato da saúde mental na comunicação social em Portugal

Que visibilidade e que características tem a informação sobre saúde mental na comunicação social? Que contributos dá para a literacia em saúde mental e para a formação de atitudes sobre a doença mental e os seus doentes?

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A temática da saúde e doença mental tende a ser mais notada nas páginas dos jornais e noticiários televisivos, e, porventura, matéria de debate público, quando, por exemplo, uma figura pública assume sofrer de uma determinada patologia, ou é associada a um comportamento suicidário (consumado ou tentado). Também tendem a assumir maior protagonismo mediático situações extraordinárias pela sua raridade, mas com impacto social, em particular se envolverem violência ou crime. No entanto, a presença de informação sobre saúde mental na comunicação social é uma constante no dia-a-dia. Surge em conteúdos jornalísticos que abordam unicamente esses temas, mas também num plano secundário associada a outros assuntos. Actualmente, o impacto da pandemia de covid-19 na saúde mental, em particular devido à situação de confinamento e isolamento, tem merecido particular cobertura mediática e atenção por parte do público.

A ciência tem demonstrado que a sua circulação em permanência no espaço público mediatizado ao longo do tempo contribui para a obtenção de conhecimento sobre as várias doenças e para a adopção de comportamentos promotores de saúde e bem-estar. É também uma importante fonte com poder de influência na formação de opiniões e atitudes sobre as várias vertentes da saúde mental. Em particular na desconstrução ou perpetuação de estereótipos estigmatizantes em relação à doença mental e aos doentes com patologias diversas. O estigma pode ser social e referir-se ao outro, o indivíduo com doença mental. Mas também pode ser internalizado pelo próprio doente, que assume para si os estereótipos negativos sobre a doença, podendo levar ao isolamento, à autodepreciação ou à rejeição da sua condição, assim como contribuir para o agravamento dos sintomas por não recorrer a aconselhamento ou tratamento especializado, ou ainda por falta de adesão terapêutica.

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A presença de informação sobre saúde mental na comunicação social é uma constante no dia-a-dia Daniel Rocha

A investigação, ao colocar em evidência as características da informação e os padrões discursivos que podem influenciar a aquisição de conhecimentos e as opiniões e atitudes sobre a saúde e a doença mental, fornece simultaneamente indicações sobre como esses temas são tratados do ponto de vista do trabalho jornalístico e que critérios editoriais predominam. Conhecer estas tendências informativas dominantes será útil para ajudar definir recomendações e estratégias num trabalho conjunto entre os especialistas de saúde mental e os meios de comunicação social, no sentido de produzir conteúdos que ajudem a prevenir comportamentos de risco e a melhorar a literacia em saúde mental. Exemplo disso é a existência de normas da OMS para a cobertura de casos de suicídio ou de um guia elaborado pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental para jornalistas.

Foi desenvolvida recentemente uma investigação no ICS-ULisboa (com o apoio da EUTIMIA — Aliança Europeia contra a Depressão em Portugal) para conhecer a frequência e as características dessa informação na comunicação social que contribuem para as representações sociais sobre a saúde mental. O estudo teve por base uma amostra representativa dos artigos publicados na imprensa escrita em Portugal que abordavam os mais variados temas sobre saúde mental, independentemente da centralidade que ocupam nesses conteúdos. Procurou-se compreender a que tópicos está mais associada a informação sobre saúde mental e como é construída e enquadrada em termos jornalísticos; as patologias mais destacadas e a forma como os doentes são retratados; os sintomas, causas e tratamentos descritos; as abordagens do acesso aos cuidados de saúde; a informação sobre a prevenção da doença e a promoção da saúde mental; os atributos discursivos do suicídio; e, por fim, como é avaliado o nível de estigmatização da globalidade de toda a informação.

Violência, suicídio e depressão

Para além de notícias, reportagens, entrevistas ou artigos de opinião com conteúdos que se centram em aspectos relacionados com a saúde e a doença mental, tais como patologias, doentes e tratamentos, ciência e investigação, funcionamento e acesso a cuidados de saúde, prevenção da doença, relatos de suicídio, entre outros, a informação sobre saúde mental pode também surgir associada, com maior ou menor destaque, aos mais variados assuntos e com enquadramentos diversos. Desde as outras especialidades da saúde e medicina, a esfera do trabalho e das profissões, as condições socioeconómicas, as políticas públicas, o social e a cultura, passando pelas histórias de vida, até à justiça, à violência ou ao crime, a saúde mental pode estar relacionada com qualquer área da vida social ou aspecto da existência individual.

Apesar da multiplicidade de tópicos possíveis, 35% dos artigos jornalísticos associam informação alusiva à saúde mental a assuntos sobre justiça, crime e violência, seguindo-se o relato de suicídios. Mesmo quando estes assuntos não são o foco principal da notícia, apenas um terço do total das peças publicadas não refere nenhum tipo de acto agressivo ou violento, e metade inclui uma referência ao acto de suicídio. Esta associação entre saúde mental e violência é uma tendência já conhecida na literatura científica internacional, mas que em Portugal parece assumir uma especial relevância. Os tópicos exclusivamente sobre saúde somam 16%. Todos os restantes assuntos possíveis que possam ser relacionados com saúde mental são pouco abordados, com expressões individuais abaixo dos 10%.

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Apesar da multiplicidade de tópicos possíveis, 35% dos artigos jornalísticos associam informação alusiva à saúde mental a assuntos sobre justiça, crime e violência, seguindo-se o relato de suicídios Daniel Rocha

Quanto a patologias, as perturbações de humor ou afectivas, quase sempre a depressão, têm quatro vezes mais representação na imprensa portuguesa do que as perturbações da personalidade, as perturbações de ansiedade, o stress, e as perturbações pelo uso de substâncias e jogo. A perturbação obsessivo-compulsiva, a perturbação de défice de atenção/hiperactividade, as perturbações do comportamento alimentar e os transtornos sexuais têm pouca ou nenhuma expressão na comunicação social.

No entanto, um número muito significativo de peças jornalísticas, cerca de um terço, refere-se à doença mental em causa recorrendo a termos pouco precisos ou coloquiais, tais como “transtorno mental”, “problema psiquiátrico”, “patologia mental”, “problema mental”, “distúrbio psicológico”, “perturbação mental”, “insanidade”, “estado mental frágil”, “alterações comportamentais”, “perturbação grave”, “estado psicológico alterado” entre outras expressões semelhantes. A ausência de identificação concreta ou, pelo menos, aproximada, da patologia retratada, para além de não proporcionar aos leitores a melhor compreensão sobre a variedade, complexidade e vivências da doença mental, contribui também, em certa medida, para alimentar os estereótipos, como se a doença mental fosse uma condição única e originasse os mesmos comportamentos e efeitos.

A informação específica sobre a patologia mental tende, assim, a ser baixa. Apenas um em cada cinco artigos faz referência a causas, sintomas, tratamentos ou à promoção da saúde e prevenção da doença. Sobre o funcionamento e acesso a serviços e cuidados de saúde há ainda menos informação. Os cuidados hospitalares têm uma visibilidade mediática quase exclusiva comparativamente com outros serviços de saúde, indicando uma visão eminentemente hospitalocêntrica da prestação de cuidados de saúde mental. Isto em detrimento dos cuidados de saúde primários, em que poderá existir a detecção e acompanhamento precoces de alguns desses problemas de saúde, assim como maior foco nas acções de promoção da saúde e prevenção da doença mental.

A noticiabilidade do suicídio

Como a investigação científica tem demonstrado e a OMS tem alertado, a atenção mediática repetida e continuada dada ao comportamento suicida, levando a uma certa “normalização” do acto, associada a uma cobertura jornalística com informação demasiado detalhada, pode potenciar o comportamento suicida em populações vulneráveis.

O estudo do ICS-ULisboa demonstrou que em Portugal surge uma referência a um acto de suicídio (consumado, tentativa ou idealizado) em cerca de metade do total das peças que abordam assuntos relacionados com a saúde mental, muitas vezes com grande destaque editorial. Uma em cada duas peças que fazem referência ao suicídio, quer enquanto objecto principal da notícia, quer como elemento informativo relacionado com outro assunto, identifica o factor de motivação (quase sempre apenas um e com explicações simplistas), menciona o método utilizado e o local onde ocorreu. Em um quarto desses artigos pode mesmo encontrar-se a descrição sobre a operacionalização do método utilizado para cometer o suicídio relatado.

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A informação específica sobre a patologia mental tende, assim, a ser baixa. Apenas um em cada cinco artigos faz referência a causas, sintomas, tratamentos ou à promoção da saúde e prevenção da doença Enric Vives-Rubio

Este padrão informativo — simplista na abordagem e excessivamente descritivo — ainda bastante expressivo do modo como o suicídio é tratado jornalisticamente, em particular pela imprensa de cariz mais sensacionalista, que lhe atribui maior destaque editorial, é amplamente contrário às recomendações de especialistas e de organizações de saúde pública. A ocorrência de processos de mimetização do comportamento suicida (o designado “Efeito Werther”, que a literatura científica tem demonstrado existir relacionado com a cobertura mediática do suicídio) é uma realidade que importa prevenir.

A estigmatização da doença mental

Tendo em conta as características globais da informação publicada na comunicação social, os conteúdos potenciais de estigmatização são ainda bastante expressivos. A nossa investigação demonstrou que seis em cada dez notícias e outros formatos jornalísticos contribuem para promover representações estigmatizantes sobre a doença mental. Isto é, apresentam os indivíduos com doença mental associados a violência, agressão e crime, ou, quando não perigosos, socialmente disfuncionais e desintegrados. São recorrentes discursos excessivamente simplificados, uniformizadores, coloquiais e incorrectos quanto a comportamentos e diagnósticos. Também se exprimem mitos e preconceitos sobre doença mental.

Ao invés, apenas um em cada dez artigos tem um potencial claro de desestigmatização, que se traduz na apresentação dos sujeitos com doença mental como funcionais e integrados na sociedade, em igualdade ou em situação similar às pessoas sem doença mental, assim como histórias de indivíduos (conhecidos ou não do grande público) que superaram ou admitem sofrer de doença mental, enquadradas e com conteúdos pedagógicos; ou fornece recomendações e exemplos de acções de promoção de saúde mental, prevenção da doença e tratamento, com contributos de profissionais de saúde ou baseada em evidência científica e clínica que seja informativa e educativa. Em igual número surgem ainda os conteúdos com elementos informativos positivos e negativos, e dois em cada dez artigos não fornecem ao leitor uma perspectiva sobre a saúde mental.

O retrato da cobertura da saúde mental na imprensa, cujas características e tendências globais não são exclusivas de Portugal, mostra assim uma contribuição limitada para a melhoria da literacia em saúde mental, continuando a promover, em grande medida, a estereotipização da doença mental e a estigmatização dos doentes com patologias diversas, não obstante o esforço e os muitos bons exemplos de trabalhos jornalísticos que são publicados.

O interesse por mais e melhor informação por parte do público nas áreas da saúde e bem-estar, assim como a maior consciencialização e competência do jornalismo para um tratamento mais adequado de conteúdos sobre saúde mental, tenderá a trazer melhor qualidade informativa. A comunicação social tem um papel fundamental na prevenção da doença mental, que beneficiaria de uma maior colaboração entre especialistas em saúde mental e o jornalismo, no sentido de serem seguidas normas e recomendações sobre como tratar estes temas e, mais concretamente, o suicídio. A formação específica sobre saúde mental, pelo menos para os jornalistas que se dedicam habitualmente à área da saúde, teria assim toda a utilidade para que a informação difundida possa contribuir mais eficazmente para os necessários ganhos em saúde pública.


Sociólogo, ICS-ULisboa


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