Flecha, o novo livro de Matilde Campilho
A primeira obra em prosa de Matilde Campilho chegou nesta sexta-feira às livrarias. São “narrativas que foram surgindo um dia depois do outro, às vezes durante a tarde, outras logo pela manhã, e a maioria delas quando a noite já havia caído”, como escreve no prefácio a autora. Leia aqui sete das histórias de Flecha, editado pela Tinta da China.
Iker entra na Basílica de São Marcos, em Veneza, e fica tão ofuscado pelo brilho do ouro que não consegue ver Deus nem o seu filho, nada para lá do grande amarelo.
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Tem quatro anos e aparentemente não sente ainda a passagem do tempo. Sabe, isso sim, que por sorte ou por amor é-lhe permitido de vez em quando ficar sozinho na areia molhada com dois objetos apenas: um balde e um ancinho. Não sabe quanto tempo o tempo tem, mas sabe que naquele espaço reincidente ele consegue sozinho erguer construções cheias de rostos, de nomes, de odores, de desejos. E neles ele roça sempre que pode, cheio de saudade, o seu pequeno torso nu.
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Uma lâmpada brilha num lugar escuro. Um homem de barba forte e negra observa a dança daquela chama durante uma noite inteira. Parece mesmo que o fogo solta palavras, e as palavras falam com ele. Depois o dia desponta. O homem sai da caverna, estica os braços primeiro e esfrega os olhos depois. Pensa que a luz da estrela da manhã tem qualquer coisa em comum com a luz do fogo noturno, mas não sabe bem o quê. Coloca as sandálias e desce então até à cidade e, antes de pensar no que quer que seja, pede na taberna um desjejum. Um pedaço de pão e meio copo de vinho são suficientes para que o homem se sinta recuperado. Enquanto come com a fome própria dos madrugadores, observa em sua volta as colunas, os cavalos, os centuriões, as flores. Sente comichão no coração, mas não sabe bem porquê. Vai coçando o peito como pode, com a mão direita, enquanto com a mão esquerda leva devagar o vinho à boca.
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Sentada sobre o tapete vermelho, às três da tarde, Akashleena mantém-se imóvel. Tem as pernas cruzadas uma sobre a outra, e por cima delas sustenta uma sitar. Mesmo não estando ainda a tocar o instrumento, a prática já começou. Aprendeu com o pai que numa sitar estão escondidas as harmonias primordiais de criação, e que a música que resulta do passar dos dedos de uma mulher nos dezoito trastos as invoca. Akashleena sabe que cada raga tem a sua existência natural, e que assim que soltar a primeira corda estará a dar início a uma nova conversa. Tal como acontece com os homens, mas mais ainda com os deuses, as ragas têm personalidades próprias. Às três da tarde de hoje, com as mãos no tapete e os olhos postos no instrumento, Akashleena toca uma canção inicial. Não a inventa, não a simula — simplesmente a descobre.
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Um porco vadio corre desorientado no meio da confusão do mercado. O animal tinha passado os últimos dias meio adormecido ali mesmo, junto ao cais, dentro de um monte de estrume. Mas os gritos dos vendedores assustaram-no e ele pôs-se a correr sem governo. Não vê nada. Tem os olhos turvos da lama seca. Acelera entre pés de mesa e pés de gente, bate com a anca numa pilha de laranjas, arranca o tecido a uma tenda, desfaz as flores, avança desgovernado entre tantos animais enjaulados. Ninguém o sabe parar. O porco escorrega na água suja e nos restos de couve, pisa mulheres e homens no caminho, só sabe seguir em frente. Até que, finalmente, embate nas patas de um cavalo. O garanhão dá um pinote e cai para a frente. No salto, cospe para o ar o pequeno rei que levava na garupa, deixando-o desacordado para sempre nas margens do Sena.
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Lídia ata uma corda muito fina ao pulso, e coloca entre aquela guita e a sua pele um raminho de hissopo.
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Alugou um carro só para isto. Atravessou três fronteiras só para isto. Apanhou também um barco (daqueles que aceitam levar carros e gente dentro) e quando chegou à ilha precisou ainda de atravessar arcos naturais e grutas brancas. Quando finalmente chegou ao litoral da ilha e pôde ver aquela placa que assinalava a vermelho o fim do lugar de Capri, abandonou o carro e abandonou todo o passado.