Longe dos filhos e sem afectos: ser mãe em tempos de covid-19

No Dia da Mãe há profissionais de saúde que não o festejam para proteger os filhos do risco de contágio da pandemia.

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A enfermeira Júlia Novo e marido, também enfermeiro, vê os filhos de longe
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O filho da pediatra Mariana Rodrigues pergunta-lhe por videochamada como estão os meninos doentes
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A enfermeira directora Patrícia Cardoso vê os filhos ao fim-de-semana
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Cátia Santos é assistente operacional e decidiu afastar-se da sua mãe

Naquele dia 23 de Março, foram mais demorados os beijos, os abraços e as despedidas entre Júlia Novo e os filhos. Sem data definida para os mimar de novo, a enfermeira deixou-os aos cuidados dos avós. Nem hoje, que se comemora o Dia da Mãe, estarão juntos. Não foi a única: a colega Patrícia Cardoso e a pediatra Mariana Rodrigues fazem parte do grupo de mães que decidiram afastar-se da família para trabalharem durante este surto de covid-19. Também há filhos que o fazem pelas mães, como Cátia Santos, assistente operacional. 

“Por causa do risco de contágio, pus a saúde e o amor acima da saudade e dos afectos”, desabafa Júlia Novo, que trabalha no serviço de diagnóstico de covid-19 na Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM), e tem um filho, de 11 anos, com problemas respiratórios, e uma filha, de oito, que sofre de narcolepsia (uma doença rara neurológica que a incapacita de se manter acordada)​.

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Júlia Novo: “A mais nova ainda estica os braços e pergunta quando a podemos abraçar e beijar.”

Não é fácil, sobretudo pela distância. “São as saudades de os abraçar, das brincadeiras, de os ver crescer”, começa por dizer Mariana Rodrigues, pediatra no Hospital de São João, no Porto, desolada por não estar a acompanhar o desenvolvimento do filho de dois e da filha de cinco anos. “O mais pequeno está a aprender a ir ao pote e eu não o ensinei, está a falar mais e não trabalhei essa competência com ele.”

A decisão de Mariana Rodrigues e do marido, também médico, foi tomada uma semana antes do encerramento das escolas. Então, as crianças ficaram aos cuidados dos avós. “Ainda só havia casos importados, não se registavam transmissões comunitárias, mas os relatos que ouvíamos de outros países eram assustadores.” O casal de médicos sabia que iria estar na primeira linha de contacto com o coronavírus.

“A saudade vai acumulando e vai doendo mais”, desabafa Patrícia Cardoso, enfermeira directora do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho. Vê os filhos de nove e de seis anos, quando vai de fim-de-semana a casa, em Aveiro, onde dorme num quarto à parte. Vê-os, mas não lhes toca. “É duro. O que mais custa é não haver afectos. Como mãe, continua a faltar o abraço e o mimo, no final do dia”, lamenta. “Coloco máscara e não me aproximo.” 

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Patrícia Cardoso: “Ando pelas enfermarias, vou aos serviços, cruzo-me com doentes covid. É a minha realidade há um mês e meio.”

Todas estas mães saíram de casa para proteger os filhos. E as filhas que o fazem pelas mães com quem vivem? Cátia Santos, há 15 anos assistente operacional no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, passou a estar confinada num quarto de hotel para não pôr em risco a mãe, que tem problemas de saúde. “Faço turnos de 12 horas, num serviço de contingência covid-19, com muitos doentes que estão sobre uma carga enorme de aerossóis”, descreve. 

Explicar e não mentir

Apesar das saudades, Mariana Rodrigues e o marido não se arrependem da decisão. “Eles estão muito bem e, ainda por cima, trabalhamos no hospital que tem mais casos no país.” Quando o PÚBLICO falou com a pediatra, no início da semana, havia 108 crianças que tinham testado positivo, mas só uma esteve internada. Nos contactos diários que tem por videoconferência, o filho pergunta-lhe: “Há muitos meninos doentes?” E quer mandar-lhes beijinhos, conta a mãe, que considera a atitude “amorosa” e tenta disfarçar com uma gargalhada a dor que sente devido ao afastamento. Vê-los, mesmo de longe, nem pensar. Só iria causar ainda mais angústia. “Não iriam compreender as medidas de restrição.”

Júlia Novo vive agora num alojamento local, no âmbito de um protocolo entre a Câmara de Matosinhos e o hospital. Inicialmente, estava com o marido, mas como este é enfermeiro noutra instituição teve de mudar para um hotel. “De vez em quando estamos juntos, mas não é fácil”, desabafa a enfermeira que, ainda há dias, fez um teste covid-19 que deu negativo. 

Habituados a ficar com os avós, os filhos de Júlia Novo perceberam que, desta vez, seria diferente. “A minha filha ficou muito ansiosa e com medo do que nos poderia acontecer quando explicámos que era um vírus muito perigoso e que tínhamos de ficar afastados para os proteger.” 

Não se deve criar falsas expectativas na criança nem mentir. “Deve ser explicado aos miúdos, seja qual for a idade, que não é possível dar afecto e carinho, mas que continuamos a gostar muito deles. E daremos logo que seja possível”, recomenda Mafalda Barral, directora do Serviço de Psicologia do Hospital Pedro Hispano, que também sentiu na pele o distanciamento dos filhos de 14, 13 e quatro anos, quando esteve de quarentena, em casa, por suspeita de estar infectada. “Foram momentos angustiantes. O que mais me incomodava era ouvir o mais novo a chorar do outro lado da porta. Não percebia porque não podia estar comigo. E eu não o podia reconfortar”, lembra a psicóloga. “Se explicarmos à criança, acaba por ficar mais tranquila e com uma sensação de segurança, amor e de vínculo”, aconselha, sublinhando que deve “sentir que a mãe está a cuidar dela, só não a pode pôr em risco”. 

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Mariana Rodrigues: “Estando longe, é mais difícil confortá-los.”

Por exemplo, Mariana Rodrigues explicou aos filhos que “o coronavírus é uma gripe que anda por aí e os papás têm de ajudar as pessoas que estão doentes”. Eles entendem, mas, depois de quase dois meses separados, a filha mais velha está mais ansiosa, irritada e sente falta dos pais. “Estando longe, é mais difícil confortá-los”, lamenta. 

Ao telefone, Júlia Novo costuma perguntar à filha se dormiu bem. Ela responde: “Sem ti não consigo, mãe.” Mas a avó acaba por sossegar a enfermeira, garantindo que a criança passou bem a noite. Por vezes, o casal vai espreitar os filhos, de longe. Eles na janela da casa e os pais, no carro, do outro lado da rua. Despedem-se de coração inquieto. “A mais nova, que é muito chegada a mim por causa da doença, ainda estica os braços e pergunta quando a podemos abraçar e beijar”, conta, comovida. 

“Desafio brutal”

“É um desafio brutal. Tenho dito a muitos colegas — pais que sentem que estão a falhar com os filhos ou jovens filhas com as mães — que estarem afastados se trata de um acto de amor e de protecção”, sublinha a psicóloga Mafalda Barral. Não estão a ser egoístas nem a privilegiar o trabalho em detrimento da família, continua, depois “ficam mais tranquilos e em paz neste papel”.

​À segunda-feira, Patrícia Cardoso viaja para Vila Nova de Gaia onde fica até sexta-feira. Só vê os filhos por videoconferência, põem a conversa em dia e tenta ajudá-los com os trabalhos de casa, para libertar o marido que está sozinho com eles. “Ando pelas enfermarias, vou aos serviços, cruzo-me com doentes covid. É a minha realidade há um mês e meio”, diz, justificando a decisão de se afastar.

Os aniversários da pediatra Mariana Rodrigues, a 25 de Abril, e dos filhos, no mesmo mês, comemoraram-se por videoconferência. Os filhos enviaram-lhe um ramo de cravos vermelhos e mais alguns presentes. O marido de Júlia Novo também fez anos em Abril, longe dos filhos. “Comprámos um bolo e deixámos metade à porta da casa dos meus pais”, recorda a enfermeira.

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Cátia Santos: “Faço turnos de 12 horas, num serviço de contingência covid-19, com muitos doentes que estão sobre uma carga enorme de aerossóis.”

“Descendo aquela rampa que separa a parte limpa da contaminada, o meu coração já bate de tal forma que é impossível não ter medo”, confessa Cátia Santos, que faz a higienização da enfermaria onde estão os doentes, no centro hospitalar. “Temos de estar sempre disponíveis para desinfectar todo o percurso que o doente faz. Se vai à casa de banho ou fazer um exame médico, temos de ir atrás a desinfectar o chão, as paredes ou puxadores de portas onde possa tocar”, resume. Por isso, decidiu ficar longe da mãe e dorme agora num hotel.

Sente a solidão. “O que mais dói é ver aqueles doentes a sofrerem sozinhos sem uma visita. Isto é mesmo duro, uma guerra que não pensava viver.” Por isso, apela: “Fiquem em casa, pela vossa e pela nossa saúde.”

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