Obras-primas da pintura em versão caseira

A ideia surgiu em páginas de Facebook e Instagram, mas já chegou aos museus. Milhares de pessoas confinadas por causa da covid-19 estão a criar versões domésticas de obras de arte famosas. O Getty Museum, na Califórnia, seleccionou dez recriações notáveis.

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A original reconstituição de Irena Ochódzka sobre uma escultura grega em mármore, datada do terceiro milénio antes de Cristo
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A pintura barroca "Lot e as suas Filhas" em versão caseira por Qie Zhang, marido e filhas
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a versão criada por Elizabeth Ariza e pela sua filha da pintura "La Blanchisseuse" (1761), do francês, Jean-Baptiste Greuze
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Réplica da "Guernica" de Picasso
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No final do primeiro quartel do século XVII, o pintor italiano Orazio Gentileschi retratou a cena bíblica de Lot com as suas duas filhas após a destruição de Sodoma. Pintado num estilo que já acusa a influência de um artista mais jovem, Caravaggio, o quadro está hoje no J. Paul Getty Museum, vulgo Getty, na Califórnia. “Foi a primeira pintura que me chamou a atenção na colecção”, conta Qie Zhang, “e achei que a podíamos fazer facilmente”. O plural “podíamos” englobava o seu marido, Erik Carlsson, e as suas duas filhas, que, sob a meticulosa encenação de Qie, recriaram a obra de Gentileschi em versão mais caseirinha, com um Lot tão extenuado por estar há dias fechado em casa com duas filhas pequenas como o outro pela sua fuga da aniquilação de Sodoma.

Esta versão contemporânea da pintura barroca Lot e as suas Filhas é uma das dez recriações caseiras de obras de arte que o Getty seleccionou e expôs no seu site, de entre as mais de cem mil que lhe chegaram desde que, no final de Março, incentivou os seus visitantes a vasculharem o catálogo digital do museu e a recriarem as suas obras preferidas usando os objectos que têm por casa.

O museu californiano explica que se inspirou numa página de Instagram holandesa chamada Tussen Kunst & Quarantaine (Entre Arte e Quarentena), onde se podem encontrar centenas de recriações de obras de arte. É difícil saber-se ao certo em que lugar da Internet é que nasceu este novo jogo dos tempos de pandemia, que retoma noutros moldes quer as recriações paródicas, muito frequentes na arte moderna, quer a antiga tradição dos quadros vivos, mas parece ter sido nesta página holandesa que primeiro se tornou viral.

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Rereciação de "Interior with an Easel" Vilhelm Hammershøi (1912) por Tracy McKaskle

Intuições de génio

Ainda a quarentena ia no início quando Anneloes Officier, uma holandesa de 31 anos, colocou nas redes sociais, a 14 de Março, uma versão ostensivamente humorística da celebérrima Rapariga com Brinco de Pérola, de Vermeer, usando um tecido azul na cabeça e um alho a fazer de brinco. No dia seguinte, alguém no Rijksmuseum de Amesterdão tropeçou na imagem e o museu começou a segui-la. É assim que nasce a página Entre Arte e Quarentena, que esta terça-feira tinha já perto de 230 mil seguidores e uma colecção de mais de 500 recriações, incluindo um ecléctico lote de variações da Rapariga com Brinco de Pérola: uma em versão vegan, duas com gatos, outras duas masculinas, e uma delas negra e com a barba por aparar.

Mas se algumas versões aspiram sobretudo a fazer rir, outras devem ter exigido, além de imaginação, um trabalho considerável, como a réplica da Guernica de Picasso que alguém publicou nesta mesma página, construída com recurso a uma presumível mãe, várias crianças, um cavalo de peluche e um alce a fazer as vezes de touro. Tudo fotografado a preto e branco, claro. E depois há intuições de génio, como a do artista doméstico que percebeu que o seu cão tinha uma expressão igualzinha à da Grande Odalisca (1814) de Ingres, de modo que foi só deitá-lo e conseguir que voltasse o pescoço e olhasse para trás.

Há também uma página de Facebook em língua russa com muitos exemplos de recriações do mesmo tipo, da Acrobata Com Bola (1905), de Picasso, reinterpretada com um frasco, uma bola de vidro, um copo de pé alto e duas palhinhas, ou o Cão com Prato de Salsichas (1878), de Wilhelm Trübner, reencenado com o cão da casa e uma terrina de salsichas frescas.

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"Auto-retrato" de Joseph Ducreux (1783) por Paul Morris

Nada mais do que a perfeição

Mas cabe ao Getty ter percebido que este novo hobby nascido para evitar o tédio de um prolongado confinamento doméstico oferecia uma oportunidade única para ir mantendo viva a relação do museu com o seu público durante este período em que as medidas para conter a propagação da covid-19 o impedem de receber visitantes. Adaptando a proposta da página de Instagram holandesa, o Getty usou as várias redes sociais para convidar as pessoas a usar as digitalizações que o site do museu oferece das obras da sua colecção, recriando depois aquelas de que gostar mais ou que se adaptem melhor aos materiais que cada um tiver em casa, o que inclui os objectos, mas também os próprios moradores e os seus eventuais animais de estimação.

Acrescentando ainda uma série de conselhos úteis — como escolher uma obra, como compor uma pose, como privilegiar as formas em detrimento das cores, como conseguir a luz ideal —, o museu californiano tornou-se rapidamente a referência institucional deste jogo cultural, que começa a ser referido noutros sites, e pela generalidade dos praticantes, como “Getty Challenge” (“Desafio Getty”).

Confessando-se “maravilhados com os poderes criativos e o sentido de humor” das inesperadas dezenas de milhares de pessoas que aceitaram o repto, os responsáveis do museu especificam que houve quem recriasse Jeff Koons com uma pilha de meias ou replicasse O Grito de Munch numa torrada, e que foram muitos os que conseguiram “macgyverar” (neologismo criado a partir do desenrascado protagonista da popular série televisiva) vestimentas a partir de toalhas, almofadas, cachecóis, toucas de banho, filtros de café (…) e, claro, papel higiénico”. 

Entre a dezena de recriações que o Getty escolheu para exibir e comentar, conta-se, por exemplo, a original reconstituição que Irena Ochódzka apresentou de uma escultura grega em mármore, datada do terceiro milénio antes de Cristo, que mostra um tocador masculino de harpa sentando num banquinho. Imitando impecavelmente a posição do músico, Irena substituiu a harpa pelo mais doméstico dos objectos: um aspirador, cujo tubo desenha no ar uma forma idêntica à da moldura da harpa.

Particularmente conseguida é também a versão criada por Elizabeth Ariza e pela sua filha da pintura La Blanchisseuse (1761), do francês, Jean-Baptiste Greuze. Como a lavadeira do quadro original, a criança tem diante dela a bacia da roupa, mas que nesta nova composição convive com uma moderna máquina de lavar. A filha de Elizabeth, diz a própria mãe, “adora vestir adereços” e é “uma actriz natural”. Os especialistas do Getty estão de acordo: “O resultado final é a perfeição.”

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