Consolidação orçamental perpetua a austeridade na Cultura

Continuando a este ritmo, seriam precisos mais de 25 anos para a Cultura atingir 1% do total das despesas e mais de 40 para chegar aos 2% que o Governo refere.

Lê-se no relatório do Orçamento do Estado para 2020 que “o Governo prosseguirá a política de reforço da área da Cultura, com o objetivo de atingir, ao longo da legislatura, 2% da despesa discricionária prevista no Orçamento do Estado”. Mas, consultando o mesmo documento, observa-se uma despesa em Cultura de 0,28% da despesa total prevista. Poderia dizer-se que não falta ambição ao Governo, mas a ingenuidade não chega a tanto. Continuando a este ritmo, seriam precisos mais de 25 anos para a Cultura atingir 1% do total das despesas, mais de 40 para chegar a 2%.

O Governo decidiu atirar areia para os olhos de quem se organiza para reivindicar a construção de alguma política cultural. Usa e abusa da confusão propositada e da lenda da transversalidade das despesas em Cultura para desmobilizar quem lhe faz frente, nomeadamente quem hoje garante a produção cultural que cabe ao Estado financiar. 

O mesmo Orçamento de Estado que apresenta excedente define 0,283% para todas as políticas relacionadas com preservação e acesso ao património, museus, bibliotecas, teatros, arquivos, com a arqueologia, a literatura, a criação e difusão artística do cinema, artes plásticas, teatro ou dança, levadas a cabo por instituições tão diversas como a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, o Instituto do Cinema e Audiovisual, a Direção-Geral do Património Cultural, a Direção-Geral das Artes, a Cinemateca, o Centro Cultural de Belém, os Teatros Nacionais, a Biblioteca Nacional ou as Direções Regionais de Cultura. 

Dizer que 0,283% é suficiente ou que é um passo num caminho a seguir não convence ninguém.

Uma política cultural que garanta os direitos culturais da população, capaz de produzir e transmitir conhecimento, de qualificar e democratizar a sociedade não se faz com 0,283% do orçamento.

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Sabemos que está tudo por fazer. Se com esta má comédia de enganos o Governo obriga-nos a saber de contabilidade pública para proteger o direito à Cultura, preservar o património e a produção livre de arte, saberemos de contabilidade pública.

Sabemos, por exemplo, que em mais nenhum lado do Orçamento do Estado, que não a frase citada no início deste artigo, se utiliza o termo despesa discricionária. Como conceito surge aqui apenas para enganar.

A despesa pública pode, de facto, ser medida numa perspetiva transversal aos ministérios. Essa medida obedece a um conceito bem definido –​ COFOG (Classification of functions of government) – determinado pela OCDE e exigido pelo Sistema Europeu de Contas, no qual, naturalmente, não cabem as despesas com os meios de comunicação públicos (p.e. RTP). Sabemos que esta medida é publicada anualmente pelo Eurostat e que para o caso de Portugal tem estado longe de atingir 1%, ao contrário do que nos diz o Governo. Sendo possível calcular as despesas em vários níveis (central e local) e através de diferentes classificações, isso não significa que o investimento em Cultura seja indefinível, ou que tudo se transforme em Cultura.

Cada ministério tem, naturalmente, diferenças funcionais. Logo cada um tem serviços públicos que gere com o seu orçamento. Por isso a reivindicação de 1% dirige-se à despesa do Ministério da Cultura com política cultural. Dirige-se à administração central, não por desmerecimento do papel das câmaras municipais, mas porque só as políticas concertadas entre si sob uma mesma estratégia nacional poderão dar conta da construção de um necessário Serviço Nacional de Cultura. Dirige-se ao Ministério da Cultura, não porque se negue o papel importante de outros ministérios, mas porque é esta instituição que decide especificamente sobre os instrumentos e executa a política cultural. 

Sabemos ainda que o investimento em Cultura tem uma tendência decrescente há vinte anos, agravada pelos anos da troika e não contrariada pela recente política de gestão corrente dos escassos recursos, cujas cativações impedem que os pequenos melhoramentos vejam sequer a luz do dia.

Se a política dos anos da troika deprimiu quem faz Cultura, mas não surpreendeu, a política dos anos mais recentes defraudou as expectativas de muitos. Ao contrário de outros setores, a expectativa na Cultura criada há quatro anos apontava não só para um projeto de recuperação, muito necessário, mas também para um salto qualitativo e quantitativo, perfeitamente possível. Não foi o que aconteceu. 

Mantiveram-se orçamentos exíguos, como este, que mantêm os direitos culturais escondidos na Constituição, e não chegam para mais que projetos piloto e projetos de betão, a que chamam política cultural, sem recursos nem estratégia para dar sentido aos equipamentos que temos no território.

Recuperar deste atraso requer estratégia e recursos para construir o serviço público tão necessário num país que pouco se conhece a si próprio, que pouco conhece o mundo, que diz querer apostar na qualificação. Quem paga o excedente de Mário Centeno? Todos nós.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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