Uma livraria-galeria em que a arte do desenho é uma experiência

Descobrir com prazer, sem pedir desculpa, os trânsitos do desenho nas obras e entre as obras: eis o lema da Tinta nos Nervos, o novo espaço de Lisboa onde cabem a arte, a banda desenhada e a ilustração. Numa constelação de livros, álbuns, fanzines e exposições.

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A Tinta nos Nervos quer explorar várias vias de acesso ao desenho ANDREIA GOMES CARVALHO

Em Lisboa, à Madragoa, nasceu recentemente a livraria-galeria Tinta nos Nervos, um espaço novo. Perguntará o leitor: novo? O que oferece à cidade que esta antes não tinha? Uma pista: em simultâneo, publicações de manga, fanzines, obras do artista William Kentridge, livros da Planeta Tangerina, álbuns de banda desenhada francesa? Mais uma achega: uma confluência livre, com o prazer da descoberta, das artes do desenho? Na cafetaria da Tinta nos Nervos, o crítico e académico Pedro Moura, um dos fundadores, concorda: “Este é um projecto assinado por pessoas com percursos diferentes mas com um interesse genuíno por disciplinas que, por sua vez, se unem pelo desenho.”

Uma livraria especializada avessa a especializações, eis um lema que não lhe ficaria mal. Com Pedro Moura estão Ana Ruivo, Vanessa Alfaro, Luiz Azeredo, Anabela Almeida e Frederico Duarte, seis personalidades sensíveis a uma realidade que se vai manifestando. “Conhecemos muitos praticantes do desenho que cultivam várias disciplinas, mas isso nem sempre foi ou é reconhecido”, reflecte. “Ora, sentimos que há uma maior apetência em ver esses diálogos, afinidades, intervalos, ponto de contacto. Não diria que estejamos a colmatar falhas, mas a colocar no mesmo local uma oferta que existe separadamente.” O académico recorda que existem, no país, outras livrarias de banda desenhada, de ilustração para a infância, de artes gráficas. “Nesse contexto, queremos que a [Tinta nos Nervos] seja um ponto de convergência, um lugar onde uma área possa alimentar a outra.”

A influência de exemplos internacionais não é despicienda, mas o projecto não nasce, em termos locais, num vácuo histórico: “A experiência que queremos replicar não é muito diferente da que conhecemos de outros espaços galerísticos de outros países, ou mesmo de livrarias, onde esse tipo de cruzamento é corrente e reconhecido. Mas ainda há espaços, entre nós, onde algumas dessas experiências vão acontecendo.” Pedro Moura dá o exemplo, em Lisboa, da galeria Passevite, e no Porto, da Dama Aflita e da Mundo Fantasma. E no contexto da arte contemporânea, menciona o caso da Quadrum, que apresentou, ao lado de outras obras, em edição fac-similada, Le lait de la voie lactée, uma banda desenhada do artista português Manuel Zimbro. “O facto de se ter mostrado nesse contexto uma obra que até então permanecia inédita pode indiciar já uma abertura a esse diálogo. Não por acaso, vamos organizar um evento dedicado ao livro.” Ou seja, a Tinta nos Nervos quer tirar da obscuridade esses trânsitos, materializados em obras (livros ou não), o que significa falar sobre eles.

A natureza híbrida e plural da livraria-galeria também se exprime nas exposições: “Começámos com uma colectiva que ilustra o trabalho que queremos fazer no futuro. Com artistas internacionais e nacionais, mais consagrados ou emergentes. Mais ligados às galerias e aos museus ou aos circuitos independentes. Não haverá divisões.”

A Tinta nos Nervos instalou-se na Madragoa, onde a gentrificação também chegou entretanto ANDREIA GOMES CARVALHO
É cedo para falar num público-modelo desta livraria-galeria, mas uma coisa é certa: os turistas também entram ANDREIA GOMES CARVALHO
Do manga aos livros de artista, todas as declinações do desenho interessam à Tinta nos Nervos ANDREIA GOMES CARVALHO
Na primeira exposição desta livraria-galeria podem ser contemplados, por exemplo, trabalhos inéditos de Pedro Proença ANDREIA GOMES CARVALHO
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A Tinta nos Nervos instalou-se na Madragoa, onde a gentrificação também chegou entretanto ANDREIA GOMES CARVALHO

Fio da Navalha, a exposição inaugural do espaço, que se despedirá das paredes da galeria a 30 de Agosto, sustenta essa máxima: podem ali ser contemplados desenhos inéditos de Pedro Proença (Lubango, 1962), trabalhos de Ema Gaspar (Almada, 1993), autora de banda desenhada e ilustração, fotografias manipuladas de José Cardoso (Fafe, 1984) e filmes de animação de William Kentridge (Joanesburgo, 1955), que no ano passado foi objecto de uma grande exposição no Museu Reina Sofía, em Madrid. “Interessou-nos abrir com a diversidade, daí a o cariz colectivo, mas as próximas exposições serão, na sua maioria, individuais de longa duração, interrompidas por outras mais curtas, associadas a lançamentos editoriais”, explica Pedro Moura. 

Livraria-galeria, a Tinta nos Nervos inscreve-se numa história prévia, numa tradição. “Temos essa consciência. Recordo a actividade da Buchholz, da Galeria 111, da Livraria Barata e, agora mais recentemente, da Abysmo. Não se trata de uma experiência inédita”, enfatiza o responsável, “mas, e apesar de num aparente contraciclo, dado que há muitas livrarias a fechar, tentamos ser um espaço independente com uma oferta especializada”.

Fronteiras porosas

Definir um público-modelo será talvez precipitado, mas a abertura que está na base do projecto e a convicção de que existem leitores tão interessados numa obra de banda desenhada como num livro de artista deixam antever um horizonte promissor. Entretanto, entra na galeria um grupo de turistas, que, depois de observar as prateleiras, onde se encontram livros em pop-up e outros objectos, e os desenhos expostos, vai fazendo perguntas – ocasião oportuna para trazer à conversa o tema da localização. “Quando pensámos no projecto, esta zona não estava assim. Há um processo de gentrificação. Não apenas por causa do turismo e dos efeitos do Airbnb. A Embaixada de França e a sua mediateca estão aqui e abriu recentemente a Galeria Acervo. Isso reflecte-se positivamente na presença de um público estrangeiro que fica surpreendido. Tem um poder de compra diferente, mas nem sempre entra”, ressalva Pedro Moura.

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ANDREIA GOMES CARVALHO

Públicos à parte, uma das finalidades da Tinta nos Nervos é proporcionar o prazer de descobrir coisas, de perceber, sem desculpas, diálogos e influências, mesmo reconhecendo a existência de categorias e formas que delimitam, quando não separam. “Temos aqui autores que vivem em fronteiras muito porosas entre o livro de artista e o álbum ilustrado, livros que podem ser lidos por uma criança e apreciados por um adulto. Há aqui objectos que mostram, por si mesmos, os territórios que pretendemos explorar, mas também gostamos de pôr lado a lado, em diálogo, coisas diferentes.” 

Pedimos a Pedro Moura que sugira livros representativos do espírito Tinta nos Nervos. Serão todos mas, após a nossa insistência, aponta para colecção Les Cahiers Dessinées, onde se incluem, entre outros, Courbet, Buzelli, Ungerer, mostra os objectos produzidos por Fábio Zimbres, autor brasileiro de banda desenhada, abre o maravilhoso livro L'année de la comète, de Clément Vuillier, folheia o álbum de banda desenhada Xibalba, de Simon Roussin, menciona os fanzines, feitos em risografia, da artista Ana Humana. Todas são experiências de um desenho que se expande, se desdobra, em histórias, cores, referências, imaginários. Com tinta nos nervos.

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