Don Walsh: com a subida das águas do mar, “teremos nações inteiras a ter de ir embora”
Já 12 pessoas caminharam na Lua, mas só quatro foram ao ponto mais fundo do mar. Os dois primeiros a lá chegar foram Don Walsh e Jacques Piccard, em 1960 — e só deixaram de ser os únicos em 2012, quando o realizador James Cameron se decidiu aventurar nas profundezas pouco exploradas. E, para quem conhece bem os oceanos, é impossível não notar o rasto ruinoso das alterações climáticas.
Foi há quase 60 anos que o tenente norte-americano Don Walsh e o engenheiro suíço Jacques Piccard decidiram ir onde nunca ninguém tinha ido: o ponto mais fundo do mar, na Fossa das Marianas, a quase 11 mil metros de profundidade — e conseguiram-no. Agora, volvidas seis décadas, o oceanógrafo Don Walsh tem notado nas suas expedições o efeito destruidor das alterações climáticas e deixa o alerta de que ainda “temos tempo” para mudar as cidades costeiras para terrenos mais elevados; caso contrário, haverá cada vez mais refugiados climáticos. “Pela primeira vez na história da humanidade, teremos nações inteiras a ter de ir embora das suas terras por causa das alterações climáticas. Para onde vão?”, questiona.
É o caso das ilhas Seicheles, de Tuvalu ou das Maldivas, onde a maior parte do terreno está nem a um metro acima do nível da água do mar, diz ao PÚBLICO Don Walsh, numa entrevista à margem da Conferência Global de Exploração (Glex), que se realizou pela primeira vez em Lisboa para assinalar os 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. “É um assunto muito sério e o mais provável é que muitas das pessoas perderão as suas casas e as suas terras por não darem ouvidos aos conselhos dos especialistas”, explica.
De olhos postos no rio Tejo, Don Walsh refere que a natureza se mexe devagar, mas que é ela que está ao comando. “Nesta zona ribeirinha de Lisboa não se está muito acima do nível da água. Até ao final deste século, poderemos não ter edifícios submersos, mas as estradas e infra-estruturas começarão a ficar inundadas”, aponta o explorador.
No “rés-do-chão” do oceano
Dos 87 anos de vida de Don Walsh, a maior parte deles foi passada enquanto uma das únicas duas pessoas no mundo a ter ido ao ponto mais fundo do oceano (em 2012 o realizador James Cameron juntou-se à lista, assim como Victor Vescovo em Maio deste ano; Jacques Piccard morreu em 2008). Foi quando tinha 28 anos, a 23 de Janeiro de 1960, que se aventurou com Jacques Piccard a bordo do batíscafo Trieste – desenhado pelo pai de Piccard, Auguste – até ao Challenger Deep, uma ranhura nas profundezas da Fossa das Marianas que é o ponto mais fundo do mar (o nome é uma homenagem ao navio britânico Challenger II, que descobriu o ponto em 1951). Chegaram aos 10.911 metros.
“Foi bom estar no rés-do-chão – podemos dizer rés-do-chão quando estamos a falar do oceano? – para ser pioneiro em alguma coisa. Não é uma oportunidade a que todos tenhamos acesso”, observa Walsh. Um dos maiores desafios na altura era a falta de conhecimento, de tecnologia adequada e o uso inevitável de técnicas “primitivas”: “Tudo o que queríamos usar tivemos de construir nós mesmos. Tudo era novo. Às vezes, em feiras, vejo equipamentos subaquáticos e quase consigo ver as minhas impressões digitais neles” – e muito mudou em 60 anos.
Antes do dia do mergulho nas águas do Pacífico, os dois aventureiros passaram nove meses perto de Guam a fazer dezenas de mergulhos, testes e alterações nas coisas “que poderiam correr mal”. Ao todo, a viagem de ida e volta durou umas nove horas, conta Don Walsh. A descida levou perto de cinco horas. Iam às “apalpadelas”, muito devagar e com cautela. “Não tínhamos nenhum mapa do fundo marinho, como agora”.
Assim que passaram a barreira dos 9000 metros, enquanto desciam, ouviram uma janela a rachar. “Se nós ainda a conseguimos ouvir, é porque estávamos vivos; se tivesse havido uma falha na barreira de pressão entre nós e o oceano, teríamos morrido logo. Seríamos uma poça enorme de gelatina vermelha”. Assim continuaram, apesar da probabilidade sempiterna de algo correr mal. “Não podemos ter medo, se tivermos perdemos a acuidade e não somos tão perspicazes”, admite. Demoraram-se 20 minutos no fundo e o regresso à superfície levou pouco mais de três horas.
O batíscafo – um submersível utilizado para exploração subaquática – foi durante muitos anos a única forma de se poder ir ao oceano profundo. O Trieste não era pequeno e era preciso carregar as suas 150 toneladas a reboque. “Quando olhamos para este dia, parece que foi apenas um dia mais longo no escritório e isso é maravilhoso: o trabalho que tínhamos antes e depois de fazer o mergulho para pôr o submersível na ‘garagem’ era a mesma, estejamos a mergulhar dez metros ou dez mil metros”.
E qual a sensação de se estar no fundo, com quase 11 mil metros de água por cima das cabeças? A resposta é lacónica: “Nem pensei muito nisso.” De resto, tudo correu como planeado: “Fizemos o que dissemos que íamos fazer, dentro do prazo e do orçamento, com apenas 14 pessoas na equipa.”
Cada vez mais fundo
Passaram mais de 50 anos desde este primeiro mergulho até que o ser humano se voltasse a aventurar nas profundezas da Fossa das Marianas. Foi em 2012 que o cineasta canadiano James Cameron desceu sozinho a bordo do Deepsea Challenger; passou lá quatro horas e bateu o recorde de Walsh e Piccard por seis metros. “Seis metros em 11 mil não é nada. Só mesmo para brincarmos uns com os outros”, ri Don Walsh. “É uma viagem dos diabos, passei o tempo a gritar na descida e a gritar na subida”, confessou James Cameron depois de regressar à superfície. “É sem dúvida o local mais remoto e isolado do planeta. Sinto que num único dia estive noutro planeta e voltei.”
O recorde foi novamente ultrapassado em Maio deste ano, pelo oficial da Marinha norte-americana Victor Vescovo, que chegou aos 10.927 metros e foi o primeiro a fazer mais do que um mergulho (foram cinco mergulhos em dez dias). Antes, o norte-americano tinha subido aos pontos mais altos de todos os continentes e o seu objectivo agora é chegar ao ponto mais fundo dos cinco oceanos, ao longo de dez meses, na missão autofinanciada e intitulada Five Deeps. Terminará no final de Agosto e ainda o fará mergulhar até aos destroços do Titanic “porque fica a caminho” do ponto mais fundo do oceano Árctico. Don Walsh esteve presente tanto na missão de Cameron como de Vescovo.
No fundo do mar, não há luz solar, as águas são gélidas e a pressão é enorme. “É um ambiente muito hostil”, contou o explorador Victor Vescovo na quinta-feira, durante a conferência Glex, na Aula Magna da Universidade de Lisboa. Ainda assim, há vida. Ao longo da viagem, foram captadas imagens de peixes, crustáceos, plantas e vermes marinhos. “A vida encontra sempre um caminho”, declara Vescovo.
Além de vida, houve uma reviravolta agridoce na sua “proeza”: o mergulhador encontrou plástico no fundo da Fossa das Marianas, a milhares de metros de profundidade. A experiência de Don Walsh nos mares não lhe permitiu ficar surpreendido com isso: “O plástico vai para onde quer. Está em todo o lado nos oceanos, há milhões e milhões de toneladas de plástico nas águas.”
Don Walsh fez mais de 40 expedições ao Árctico e à Antárctida – tem até uma montanha chamada Walsh Spur na Antárctida – e não tem dúvidas de que as alterações climáticas são a principal ameaça para os glaciares e para os oceanos, numa equação onde também entra a acidificação dos oceanos e a pesca excessiva. “O plástico é só um sinal de que não estamos a tomar bem conta do nosso planeta.”
As mudanças são subtis, diz, mas quando se vai muitas vezes aos pólos – e em muitos anos diferentes –, as diferenças notam-se. “A Antárctida é o continente mais seco do mundo porque a quantidade de precipitação é mínima; mas quando chove, fica lá durante milhares de anos. Agora, umas décadas depois, há muita chuva e não há tanto gelo nem neve”, descreve. O mesmo acontece no Árctico.
Mesmo que a maior parte da superfície do planeta Terra seja água, os oceanos continuam a ser pouco explorados e há ainda muito por saber. Na Lua já caminharam 12 pessoas, num total de 300 horas, mas no ponto mais fundo do oceano só estiveram quatro pessoas, durante cerca de sete horas. “A minha mensagem quando falo com pessoas mais novas é de que no oceano encontramos sempre coisas novas”, como animais e novas plantas, o que já dificilmente acontece em Terra. “É onde está o nosso futuro.”