Comecemos pelas 912 cadeiras da Rua Augusta
Podem não mexer em nada, mas tenham a simpatia de não insistir na falsidade de que é impossível melhorar o centro histórico de Lisboa.
14x4=56. 10x4=40. 10x4=40. Caminho devagar e conto ao mesmo tempo, não tem nada que saber. 16x4=64. 16x4=64. Algumas são iguais. Anoto no telefone e avanço. Estou a descer a Rua Augusta a partir do Rossio em direcção ao rio. Quando chego ao cruzamento com a Rua de Santa Justa já contei 264.
Continuo a andar. 22x4=88. 24x4=96. 6x4=24. 6x4=24. 20x4=80. 12x4=48. 8x4=32. Ao passar pela H&M, já vou em 656. O Tejo continua distante. Retomo a contagem: 20x4=80. 13x4=52.
A primeira clareira, e quase a única, é no Millennium BCP, do lado esquerdo. O passeio está vazio, podemos caminhar sem pedir licença nem bater em obstáculos. Vou em 788. Registo a conta, levanto os olhos do ecrã e a meio metro está um homem enorme e quase nu mascarado de índio americano. Já o tinha visto há umas semanas, mas voltou a surpreender-me. Os homens-estátua costumam ser mais sensatos e tendem a escolher personagens com roupa. A concorrência deve estar feroz.
Falta pouco, mas ainda vejo mais algumas ao fundo. Atravesso a Rua da Conceição, sempre a andar para sul, e conto as últimas: 12x4=48. 19x4=76. Acabou. Estou à porta do MUDE, o Museu do Design e da Moda, já se vê o rio, não há espaço para mais.
Decidi contar as cadeiras da Rua Augusta, no centro da Baixa de Lisboa, para dar esperança aos lisboetas. Aqui está: são 912 cadeiras.
É muita cadeira num passeio só, para mais numa rua à qual ainda chamamos “pedonal”, do tempo em que celebrávamos as ruas conquistadas aos carros. Agora, são as cadeiras que conquistam as ruas. Venha o diabo e escolha.
Há mais cadeiras na Rua Augusta do que no Teatro da Trindade (495), no grande auditório da Culturgest (612), no Teatro Municipal de São Luiz (730) e no São Carlos (844). Até o Dona Maria II tem quase o mesmo número de cadeiras (tem só mais 36 do que a Rua Augusta).
Mas calma, não há razão para desesperar. Podemos olhar para as 912 cadeiras da Rua Augusta e ver boas notícias. Pelo menos duas.
A primeira é que as cadeiras podem ser retiradas — não é preciso todas — mal o bom senso regresse à cidade. A outra coisa boa é que o 912 dá-nos mais um argumento para responder aos que, encolhendo os ombros, dizem que a transformação de Lisboa é inexorável e temos de aceitar o crescimento do turismo como quem engole óleo de fígado de bacalhau em colheres de sopa. Todos os dias alguém diz que “não há alternativa”, que “a cidade” não é um laboratório comunista, que não se pode controlar o capitalismo nem a autarquia pode intrometer-se nas decisões dos privados.
Não é verdade. A cidade pode — e deve — impor o bom senso no espaço público. Não sei se foi a Junta de Santa Maria Maior que autorizou estas 912 cadeiras ou se as decisões são anteriores à transferência de poderes da Câmara Municipal de Lisboa para as freguesias. Sei que o vírus das cadeiras está a alastrar-se a todas as ruas do centro histórico. Até o novo café Nicolau Lisboa, que há um ano era tão cool e desprendido, se tornou numa fábrica de meter cadeiras na rua e enterrar corta-ventos na calçada. Em todas as esquinas há um homem — às vezes são vários — a impingir menus. Há uns meses vi seis destes homens aos gritos. Estavam a disputar uma esquina dos Correeiros. Dizem que é território dos carteiristas do eléctrico 28 e do restaurante que muda de nome quando é apanhado a cobrar 500 euros por uns petiscos. Têm ar de seguranças do Urban e de empregados de retrosaria — as aparências iludem.
Também ouço com frequência perguntarem por que razão Lisboa haveria de ser a excepção, quando os centros históricos europeus só têm ricos e turistas. Hoje não vou argumentar sobre isso, mas apenas dizer o óbvio: com ruas cheias de cadeiras, música e o lixo das esplanadas no chão, ninguém vai querer andar por aqui. Nem comprar casa para viver, nem escritório para trabalhar. Quem são os “ricos” que querem viver neste circo pobre?
Se querem começar por algum lado, porque não pelas 912 cadeiras da Rua Augusta? Com metade das cadeiras, os restaurantes continuariam a ter lucro, os turistas continuariam a poder almoçar e os residentes e trabalhadores da Baixa talvez voltassem a usá-la. A outra opção é não mexer em nada. Nesse caso tenham a simpatia de não insistir na falsidade de que é impossível melhorar as coisas.