Angola? “Não se preocupe, tudo tranquilo”
João Lourenço impressionou, mas é ainda uma incógnita. "É como o Papa Francisco. Não é uma mudança de regime, é apenas uma mudança de orientação."
Nunca tinha ouvido, num concentrado de 72 horas, tantas vezes a mesma resposta: “Tudo tranquilo.” O Presidente de Angola veio a Portugal e os diplomatas ficaram optimistas, os empresários confiantes, os bancários “podem dormir sossegados” e o Governo de Portugal entusiasmado. Mas, sobretudo, ficaram todos “tranquilos”.
Como se tivesse entrado uma poção mágica no Hotel Ritz e nos palácios de Belém e de São Bento, a cada pergunta sobre Angola feita nos últimos dias, o início da resposta foi sempre igual. Por vezes, foi mesmo a única resposta. “Tudo tranquilo.” Com sotaques e entoações diferentes, portugueses e angolanos foram dizendo “tranquilo”, “está tudo tranquilo”, “pode estar sossegada”, “esteja descansada”, “não se preocupe, tudo tranquilo”, “fiquei tranquilo”, “não posso dizer mais nada a não ser que estamos tranquilos”.
João Lourenço apresentou-se em Portugal como o Presidente anti-Dos Santos, que vai moralizar o país, punir quem participou do “banquete” — a expressão é sua — dos 38 anos do eduardismo, combater a corrupção, diversificar a economia (“gostaríamos de esquecer que o petróleo existe”, disse em Belém ao lado do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa), pagar as dívidas às empresas portuguesas (pagou metade nas últimas semanas), aceitar as regras de transparência (e o financiamento) do Fundo Monetário Internacional e reaver o que é de Angola e foi roubado aos cofres públicos.
Ninguém sabe se a nova política angolana vai provocar um abanão na economia portuguesa — e se o abanão, a existir, vai ser bom ou mau. Há muito dinheiro angolano ilícito em Portugal? “Tudo tranquilo.”
Se for muito, seria com certeza mau se fosse retirado de uma só vez. No sábado, em Lisboa, no seu estilo que por vezes parece saído de um guião de cinema, Lourenço disse que Portugal “não é o principal esconderijo” e que as “fortunas [de dinheiro “incongruente”] estarão espalhadas pelo mundo fora, muito provavelmente — além de Portugal —, em locais nunca antes imaginados”. Na véspera, no Porto, o primeiro-ministro António Costa disse ter garantias da parte de Luanda de que a “caça das fortunas” — a expressão também é do Presidente — “não porá em causa a estabilidade do nosso sistema financeiro”. “A minha aposta é que não será muito”, diz um diplomata que conhece profundamente o dossier das relações bilaterais. “Poderá haver casos aqui e ali, mas não serão muitos. Não creio que haja risco de ser sistémico.”
Desde a crise de 2009, os bancos adoptaram regras mais apertadas de controlo de risco e exigência sobre a origem dos depósitos. Mas em 2008, o Governo de Muammar Khadafi, da Líbia, ainda transferiu para a Caixa Geral de Depósitos (CGD), em Lisboa, 1200 milhões de euros, que mais tarde subiram para 1300 milhões — dinheiro que a seguir à Primavera Árabe e à morte de Khadafi foi congelado pelo Conselho de Segurança da ONU e pela União Europeia e depois “repatriado” para a Líbia. Esse “investimento” do regime líbio representava 2% dos depósitos da CGD. O caso é muito diferente, mas serve para dizer duas coisas. Tal como entra, o dinheiro sai. E sai de forma menos abrupta se as relações diplomáticas entre os países forem boas.
Não sabemos se o Governo português está sereno porque está outra vez “tudo tranquilo” com Angola, se é porque não tem razões para recear. O que sabemos é que o “banquete” em Angola foi grande, que os cofres estão vazios, que muito dinheiro veio para Portugal e que João Lourenço é uma incógnita.
Quem acompanha a política interna angolana de forma diária resume o último ano com dois cartoons publicados em Angola: num, João Lourenço foi desenhado como uma marioneta dócil e inerte a ser manipulada por José Eduardo dos Santos; noutro, era um exterminador implacável. Nenhum dos dois retratos será verdadeiro, mas entre os dois cartoons só passaram seis meses.
A rapidez da mudança angolana surpreendeu os mais conhecedores e por isso académicos e diplomatas estão cautelosos. Mais de 90% da política angolana foi reciclada. João Lourenço afastou muitas pessoas, mas manteve muitas mais. Basta olhar e falar com a delegação que acompanhou o Presidente a Portugal: Carolina Cerqueira, ministra da Cultura (já tinha a mesma pasta), Luís da Fonseca, ministro da Economia e Planeamento (foi vice-ministro no governo anterior), Archer Mangueira, das Finanças (manteve cargo), Ângelo da Veiga Tavares, ministro do Interior (mantém a pasta), Manuel Domingos Augusto, ministro das Relações Exteriores (foi vice do anterior chefe da diplomacia de José Eduardo dos Santos), Manuel Nunes Júnior, ministro do Estado e do Desenvolvimento Económico e Social (é novo na pasta, mas tinha papel importante no partido do governo e foi ministro da Coordenação Económica), Victor Lima, secretário para os Assuntos Diplomáticos (foi embaixador no Japão e em Espanha), Bernarda Martins, ministra da Indústria (manteve pasta após mudança) e Manuel Tavares, ministro das Obras Públicas, que é o único que nunca foi ministro no eduardismo. Só um ministro nunca teve uma pasta nos governos de José Eduardo dos Santos. Não fiz de propósito para a excepção ficar no fim. É esta a ordem pela qual os ministros estavam “arrumados” no palanque em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, onde houve a primeira cerimónia da visita de Estado.
Há outros sinais. Como o ex-vice-Presidente Manuel Vicente. Foi acusado em Portugal de corrupção e Angola exigiu que fosse julgado no seu país. Transferido o processo — e feitas as pazes — pensar-se-ia que o novo Presidente quereria manter alguma distância em relação a um homem sob suspeita de ter feito parte do “banquete”. Mas Alex Vines, da Chattam House, disse esta semana numa conferência organizada pelo Clube de Lisboa e a UCCLA, que ele faz parte do círculo de confiança de Lourenço, mantém uma influência significativa junto do núcleo duro do poder e é um dos conselheiros principais na reforma da indústria petrolífera que está a ser feita. Do mesmo modo, nada foi dito de crítico em relação aos generais Hélder Vieira Dias (“Kopelipa”) e Leopoldino do Nascimento (“Dino”), homens muito próximos de José Eduardo dos Santos, que em 2012 começaram a ser investigados pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal em Portugal por indícios de fraude fiscal e branqueamento de capitais. Segundo o jornal angolano Novo Jornal, esta semana, quando Dos Santos fez uma bizarra conferência de imprensa, o general Dino estava lá, em demonstração pública de lealdade.
Ainda não é claro se a moralização de que Lourenço fala vai ser aplicada de forma transversal ou se vai centrar-se no clã Dos Santos. Se for levado à letra, a elite do MPLA não ficará contente. Nem provavelmente alguns bancos dos “lugares improváveis”. Sem o MPLA, Lourenço não pode governar. Diz um dos tranquilos-optimistas: “É como o Papa”. Bento XVI saiu, mas continua lá perto, enquanto Francisco trabalha e muda o que consegue. “Isto não é uma mudança de regime. É apenas uma mudança de orientação.”