Reforçar hospitais com menos de 100 milhões de euros “é curto”

Um reforço inferior a 100 milhões de euros não chegará para resolver o problema crónico das dívidas dos hospitais. Aliás, resolvê-lo não é apenas uma questão de dinheiro. É preciso melhorar a gestão, diz o economista da saúde Pedro Pita Barros.

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Rui Gaudencio

Vice-reitor da Universidade Nova, professor da Nova School of Business & Economics, autor do blogue Momentos económicos... e não só. Pedro Pita Barros, considerado um dos mais influentes economistas da saúde português, recebeu o PÚBLICO nas novas instalações da faculdade em Carcavelos. O mote desta entrevista é o debate em que participa nesta quinta-feira sobre as unidades de saúde familiar, promovido pela Nova. Mas inclui também um olhar alargado sobre a saúde, numa altura em que se discute a nova lei de bases e se aproxima a entrega do novo Orçamento de Estado. Se parece claro que os hospitais precisam de mais dinheiro, é também certo que só aumentar o orçamento não resolve o problema da dívida e que é fundamental melhorar a gestão.

Veja aqui a segunda parte da entrevistaUnidades de Saúde Familiar "não são a solução universal para todos os problemas"

Há várias propostas de nova lei de bases em discussão. A espinha dorsal é a relação entre público, privado e sector social. Como define a relação actual que existe? E qual deve ser?
O primeiro ponto é perceber a que é que queremos chamar SNS. Se queremos chamar SNS à lógica de que há uma entidade pública que garante que ninguém fica privado de acesso a cuidados de saúde de que necessita por falta de condições financeiras, estamos a jogar apenas na lógica da cobertura. Por outro lado, essa protecção pode ser garantida com prestação pública, privada com fins lucrativos ou privada sem fins lucrativos. Se encaramos o SNS nessa lógica de protecção, então é compatível com qualquer um destes elementos.
Quando falamos na lei de bases da saúde, provavelmente o principal é que ela não corte ideologicamente possibilidades para que depois, em cada momento, se possa ver o que é que satisfaz mais ou melhor estas configurações. Porque não é claro que seja sempre o público, ou o privado ou o social que seja a melhor solução. O melhor desempenho não está normalmente associado ao público ou privado.

Então integrar o privado no SNS não é um garante de resolução de problemas?
Não, como também não é o garante de um descalabro.

Estamos reféns de ideologias?
Nalguns elementos sim. No caso das PPP, parece-me que há claramente um aspecto ideológico do lado BE. PCP é menos vocal, mas provavelmente alinha pelo mesmo. O cartaz do BE tem a lógica de vamos terminar as PPP para investir noutra coisa. Terão noção que uma PPP não deixa de ser um hospital público? Que se deixar de ser uma PPP, o Estado vai ter na mesma de transferir dinheiro para manter a operação? Não sei se às vezes a ideologia não vai acompanhada de um certo desconhecimento ou vontade de passar uma mensagem diferente.

Isso é também verdade do outro lado, quando se diz — e estive a olhar para a proposta do PSD — que estimativas indicam que 20% do sistema público é ineficiente e com isso se podia ir busca dois mil milhões. Isso é acreditar que pondo todos os privados a fazer aquilo se conseguia resolver todas as ineficiências. Mesmo que conseguisse poupar aqueles 20% num ano, o que me interessa também é qual é a trajectória dinâmica. É estranho que o documento praticamente não tenha nenhuma contribuição directamente relacionada com a lei de bases. Por outro lado, a lei de bases de repente desapareceu da agenda. É estanho que não se fale, por exemplo, quais são as consequências para o Orçamento do Estado que uma nova lei de bases da saúde possa ter ou não.

Este seria o momento…
Se estamos a discutir o orçamento, este seria o momento. Tal como não sabemos outra coisa: foi criada em Março a Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde, era suposto eventualmente terem algumas recomendações ou ideias que fizessem caminho para o Orçamento do Estado.

Eventualmente até mostrar porque é que esta situação dos hospitais é cíclica...
Pela composição, seria uma estrutura de ligação entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Finanças. Portanto seria provavelmente uma experiência muito importante, que resultasse bem, naquela lógica de convencer as Finanças de que o Ministério da Saúde não é um poço sem fundo em termos de gastos. Se virmos bem, o Ministério da saúde é onde há mais escrutínio público de como o dinheiro é gasto. Esta estrutura, que podia ter esse papel didáctico de pôr os dois lados numa decisão partilhada de financiamento, tem estado completamente omissa da visibilidade pública. Seria muito interessante saber o que daí vai surgir e que implicações possa ter ou não para a resolução das dívidas dos hospitais.
Na questão das dívidas causa-me alguma confusão como é que ainda não houve uma consciencialização muito maior de que isto é um problema recorrente e dinâmico e não uma questão de baixar com uma regularização extraordinária.

Quando é que o problema poderá ser resolvido?
Enquanto não mexermos nessa tendência, o problema não vai ser solucionado. E há vários elementos. Primeiro, não é um problema do medicamento embora a dívida seja à indústria farmacêutica. Não sendo um problema do medicamento, torna-se um problema de gestão. Fica a questão de saber se estamos a pedir demais para o dinheiro que se lhes está a dar ou de facto há alguns elementos de má gestão. Para a indústria farmacêutica também não é totalmente desinteressante ir vendendo para depois receber mais tarde. Põe preços mais elevados, compensa os juros que possa estar a pagar, ganha alguns juros e sabe que vai ter aquelas vendas. Enquanto eu não quebrar esta espécie de aliança entre a administração hospitalar e a indústria farmacêutica não vou conseguir resolver este problema.

Há várias formas de tentar cortar. Primeiro um hospital que repetidas vezes tenha este tipo de problemas tem de ter uma intervenção de gestão. Eventualmente se a gestão for demitida, o gestor não poder ser novamente nomeado para funções similares durante vários anos, coisas desse género. Do lado da indústria, toda a divida que a indústria não tenha registado centralmente junto do Ministério das Finanças não é reconhecida. Tudo isto também só vai funcionar se eu conseguir passar a ter, de alguma forma, uma lógica de dar um orçamento que seja minimamente razoável ao hospital. A lógica de ter orçamentos plurianuais também faz sentido, mas já podia ser feita.

Não seria necessário esperar por uma nova lei de bases...
... Para fazer isso. Uma nova lei de bases que passe ter regras muito restritas sobre questões financiamento vai simplesmente levar ao desrespeito da mesma.

Mas é claro que é preciso mais dinheiro e onde se pode ir buscá-lo?
Tem de se ir buscar mais dinheiro ou pelo menos tem de ser distribuído de uma forma diferente.

O que deve ser o orçamento para 2019?
Não faço ideia. Teria de pegar sobretudo nos hospitais e perceber o que seria um orçamento realista. Não é dar-lhes simplesmente todo o dinheiro que estão a ir buscar através da dívida que criam. Acho que isso é provavelmente excessivo.

É menos do que isso?
Se estão a criar cerca de 450 milhões de euros de dívida por ano, teria de perceber o que daí são ineficiências. Sendo que retirar essas ineficiências significa reorganizar serviços. Se for um orçamento igual ao do ano passado, acho que é caminho para continuar a ter dívida. Anunciaram mais 300 milhões [para a Saúde em 2019]. Pode ser um valor que faça algum sentido. Mas menos de 100 milhões no reforço dos orçamentos dos hospitais é curto para ajudar a resolver os problemas subjacentes à dívida [na nota explicativa do orçamento para 2018 o pagamento previsto aos hospitais rondava os 4500 milhões de euros]. Também seria interessante saber se vão premiar os hospitais que criaram mais dívida, transferindo mais para eles, ou preferir equilibrar os que estavam quase equilibrados e ver como se comportam. Também para isso eu gostaria de saber o que a estrutura de missão sugere.

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