Marinheiro de raiz sem águas para navegar
O psiquiatra e crítico de cinema António Roma Torres, co-fundador da extinta revista A Grande Ilusão, participará no dia 20 de Junho, às 18h30, num encontro com António-Pedro Vasconcelos na Cinemateca, em Lisboa, que dedica uma retrospectiva ao realizador. Esta é a sua reflexão sobre a obra do cineasta no contexto do cinema português.
António-Pedro Vasconcelos dirigiu a sua primeira longa-metragem de ficção, Perdido por cem, em 1972. Era o que eu chamei “o ano Gulbenkian” (um dos principais dinamizadores desse ponto-charneira do que se pode chamar o cinema novo português, João Bénard da Costa, talvez com mais rigor matemático e mais legitimidade, chamou-lhe “os anos Gulbenkian”).
Plural ou singular, A-P V, como muitas vezes é identificado, por uma vez esteve na onda, embora tenha partido ligeiramente mais tarde, ele que era realmente mais novo que Manoel de Oliveira, Fonseca e Costa, ou Paulo Rocha, Fernando Lopes, Cunha Telles e António Macedo que tinham chegado na onda anterior, e mesmo que Seixas Santos, que mais hesitante no momento da prática, e visado pelo poder político de então, acabaria por se atrasar ou ser atrasado, ou César Monteiro a quem o estatuto de enfant terrible o compatibilizava ainda menos com quaisquer ondas por vagas que fossem.
Mas aí estava ele, marinheiro de raiz, enfrentando a onda, neste caso mais via Paris que todos os outros, ou seja, naturalmente nouvelle vague. Talvez apenas Seixas o acompanhasse, contudo mais cerebral e contido, provavelmente acertado por um relógio suíço à Godard, quase alemão, via Straub e uma dada fase dos Cahiers, não lhe faltando sequer a dose de radicalismo gauche, que o fascínio de filmar as palavras ainda pudesse permitir.
A-P Vasconcelos era mais Truffaut, irreverente acima de tudo e intelectual apenas qb. para sobreviver, certamente talvez perdido por cem, ou por mais e até se calhar por menos, mas nem assim sem coleira ou acolhido por instituições tutelares como o seu émulo refugiado na cinemateca e discípulo de Bazin, talvez apenas temperado a custo na disciplina dos jesuítas que, se o converteram, não foi a uma moral sensaborona, mas à tentação de fazer o bem nos jogos de influência em que se terá desgastado talvez sem glória e sem proveito.
Das palavras preferiu a narrativa de um contador de histórias à sedução dos pensamentos abstratos, sem deixar de praticar o gosto da citação culta de aforismos muitas vezes alheios que lhe foram dando a grandeza a que a sua estatura física de certa maneira o destinou. Foi mosqueteiro intrépido capaz de gritar quando necessário aqui d’el rei desconfiando de unanimidades dos todos pelo um, a não ser no campo futebolístico a que nunca desdenhou associar-se. Preferiu isso ao lugar do morto e naturalmente desembainhou a espada em desafios onde a bravura se aliava à generosidade e ao gesto largo que o protegeram sempre do cinismo doentio em que a mediocridade se conforma. Talvez tenha sido, à nossa medida, um Orson Welles que prometeu mais do que pôde ou soube concretizar, mas o sonho é verdadeiramente a matriz do cinema.
Sempre lhe faltaram águas para navegar, como dizia a narração off do seu primeiro filme. E oxalá as tivesse tido ou venha ainda a ter, porque no cinema espera-se sempre por uma intrigante legenda que sinalize the end, certamente paradoxal ou enigmática, porque, doutra forma, de tão óbvia se tornaria desnecessária.
Os gatos não têm vertigens, mas a saltar alguns dos muros A-P Vasconcelos teria precisado de uma indústria de cinema e algumas profissões especializadas que verdadeiramente não encontrou.
É aí que o A-P V produtor vacilou numa primeira vertigem – a VO Filmes. “Produções Cunha Telles” era chão que deu uvas e o próprio Cunha Telles se estreara na realização na tentativa de furar o cerco. Paulo Branco ainda não era o Paulo Branco e mesmo Manoel de Oliveira não era totalmente Manoel de Oliveira. E os três filmes produzidos fazem pensar que oxalá Francisca não tivesse sido conversa acabada. A verdade é que Paulo Branco geriu a carreira impressionante de Manoel de Oliveira até muito mais tarde por muito que se possa compreender o protesto de A-P V perante a asfixia que o modelo Oliveira possa ter trazido ao cinema português, e João Botelho ficaria também muito tempo nessa órbita, sendo que o que o público queria, parecia ser a chancela cultural e não a plateia comum, all the people sem nenhuma espécie de direcção espiritual que parecia ter feito nascer Hollywood. Mas nem essa história estava especialmente bem contada.
Gatos perdidos sem coleira e a arranharem quase todos, estiveram ele e Fonseca e Costa, opostos paradoxalmente pelo muito que tinham em comum, até que Fonseca e Costa entrou finalmente com Os Cornos de Cronos na barca de Paulo Branco que até aí o ostracizava e A-P V com Call Girl encontrou lugar, transbordo via Cunha Telles outra vez produtor, ao lado de Joaquim Leitão na de Tino Navarro, um produtor que ganhara precisamente com Fonseca e Costa e Luís Filipe Rocha alguma solidez.
Cartas de marear ou astrolábios e outros instrumentos náuticos não diminuem o atrevimento dos marinheiros perante a enormidade do Bojador e talvez A-P V tenha gasto energias demais nas salas do D. Henrique o Navegador, esse completamente fora das águas para navegar. A política de armador é necessária à viagem, mas fica muita vez no cais onde é difícil perceber quem são verdadeiramente os velhos do Restelo ou mesmo se alguma vez os houve, ou se é produto da nossa imaginação (ou da falta dela). E já agora quem são os imortais.
Outros mares, porém, foram-se abrindo. O A-P V argumentista foi talvez o recurso necessário a quem acima de tudo movia o querer contar histórias. Talvez os portugueses não sejam, por natureza ou lucidez excessiva, bons contadores de histórias e talvez nem seja certo se a escolha, hoje nas novas gerações de uma crise lusíada também nova, é entre a narrativa de um Marco Martins (São Jorge) ou a poética que, no melhor, Miguel Gomes (As Mil e Uma Noites) invoca. O Gama que em Cochim conta a história, ou a canta, já pouco se lembra do Restelo de onde saiu e talvez faltasse a Carlos Saboga ou a Vasco Pulido Valente (ou a Vicente Alves do Ó nesse tempo) as horas de mar que dizem a aventura.
Faltou por ventura o A-P V actor. Quiçá o tamanho fugiu ao enquadramento, pormenor da versão com comentário do realizador que acompanha a edição do dvd de Call Girl, em que o cineasta comenta a técnica de representação de Nicolau Breyner e Joaquim de Almeida num diálogo em descida dos degraus de escada poupando nesse espaço minutos de filme ou dias de rodagem. Talvez nenhum outro cineasta português, depois de Abril e de O Pátio das Cantigas que espreita no ecrã da TV A Bela e o Paparazzo, tenha compreendido a importância do actor para contar uma história (não o actor que hipoteticamente garante a bilheteira mas o que é o corpo visível e, mais que representar, conta, sim, a história). Ou torna a história narrável, como poderia explicar o argumentista-actor Jean-Claude Carriére, para manter a sintonia francófona e não nos perdermos nos Tonino Guerra e tutti quanti que podem incluir a italo-americana família Coppola. António-Pedro Vasconcelos depois de O Lugar do Morto percebeu que contar uma história é descobrir uma Zannati ou uma Soraia ou atrever-se a roubar uma Emanuelle a algum Polanski de outras paragens, mas é também saber o que vale um pequeno apontamento de um grande actor num papel secundário, um Carlos Coelho do Parque Mayer (atenção ao último filme de A-P V ainda não estreado!) que o cinema ignorou, ou, em Call girl, um Raul Solnado, caricatura justa nos limites cómico-trágicos, de um idoso de lar capaz de içar a sua bengala como derradeira e simbólica revolta em dia do funeral de Cunhal visto na televisão, quando outras mortes se anunciam por todo o filme.
E há ainda o A-P V crítico, que entrara por concurso na função num cineclubismo que interpretava na época o debate que necessariamente complementa as obras em todas as artes, ou se entusiasmara, noutro período de cíclica crise, no Cinéfilo, revista de espectáculos que animou o imediatamente pré e pós Abril.
Invertendo uma lógica mais trivial, podemos afirmar finalmente que no A-P V realizador espreita inesperadamente o crítico frustrado. E como nestes vários papéis em que António-Pedro Vasconcelos se dividiu não se adivinha a possibilidade de uma heteronímia pessoana, o ciclo que a Cinemateca Portuguesa lhe está a dedicar em Junho-Julho talvez lhe dê uma oportunidade de se apresentar como um chefe de orquestra momentâneo de qualquer coisa que, de Manoel de Oliveira a Joaquim Leitão, se possa chamar um cinema lusíada que talvez a crítica e os académicos possam doravante estudar e caracterizar. Ele não é seguramente todo o cinema português apenas reportado à identidade do país, mas é o de todos os cineastas aqui citados e de todos os que por agora faltou citar. Eles procu(ra)ram fazer um cinema que fala do que somos aqui, neste canto lusitano, entendendo-o num, pelo menos, duplo sentido, sem autocomplacência, mas com uma dignidade reforçada a cada alcácerquibir, ou mordaz e com humor autocrítico a cada aljubarrota. Talvez mais o cinema dos portugueses que o cinema português.