Os valores europeus
A atitude adoptada face à Polónia não poderia ter surgido em melhor ocasião. Estabelece critérios e determina fronteiras inultrapassáveis.
1. O Tratado da União Europeia inscreve-se numa linha doutrinária de filiação demoliberal que surge bastante bem explicitada no seu artigo 2.º, o qual vale a pena reproduzir integralmente: “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”. À luz desta inequívoca opção por um modelo de sociedade aberta, compreende-se a impossibilidade de qualquer tergiversação perante decisões ou situações que ofendam os princípios básicos da organização de um Estado de Direito. Para precaver e combater tais anomalias dotou-se o Tratado Europeu de um outro artigo, no caso o 7.º, que confere às instâncias europeias o direito e o dever de agir sempre que qualquer Estado-membro actue em desconformidade com os valores e princípios proclamados e acautelados no já referido artigo 2.º. O artigo 7.º estabelece ainda os modos como tais iniciativas podem ser concretizadas.
Vem tudo isto a propósito da inédita e relevantíssima decisão ontem adoptada pela Comissão Europeia no sentido de instar o Conselho a iniciar um processo tendente à verificação da existência de um risco manifesto de violação grave dos valores matriciais da União Europeia por parte de um Estado-membro concreto, a Polónia. O que originou tão drástica atitude foi um conjunto de decisões tomadas pelas autoridades polacas que aparentam consubstanciar uma intolerável intromissão do poder político no âmbito da esfera judicial, concretizando dessa forma uma grave ofensa ao princípio da separação dos poderes. Na interpretação da Comissão Europeia, ao agirem desta maneira, os actuais governantes e a maioria dos parlamentares polacos atentaram contra princípios essenciais que qualquer Estado-membro tem o dever indeclinável de respeitar, sob pena de ser ajustadamente sancionado pelos seus parceiros. A participação no projecto político europeu comporta, como é sabido, um conjunto de obrigações que reflectem a adesão aos seus princípios inspiradores e orientadores.
Se, perante uma reiterada tendência manifestada por um país ou um conjunto de países para a prática de algum relaxamento na observância desses princípios, as instâncias europeias optassem por um sistemático fechar de olhos, estariam não apenas a incumprir nos seus deveres como a estimular práticas políticas verdadeiramente inadmissíveis. O governo ultraconservador de Varsóvia já deu sobejos sinais de escassa consideração pelas regras elementares do modelo democrático-liberal. Impunha-se, por isso mesmo, uma atitude firme e clara como aquela que agora foi tomada e que não pode ser senão devidamente saudada. Os órgãos decisores europeus têm de ser inclementes perante gestos e atitudes que se revestem de uma malignidade muito superior à que estará associada ao eventual incumprimento de metas orçamentais ou de objectivos de equilíbrio macroeconómico. Daí que a decisão agora tomada pela Comissão se revista de uma grande importância. É certo que haverá um longo caminho a percorrer, não sendo abusivo antecipar desde já uma oposição húngara inviabilizadora da unanimidade requerida para a aplicação de certo tipo de sanções. Isso, contudo, não retira relevância à decisão nem compromete em absoluto a possibilidade da adopção de medidas dissuasoras de tão funestas práticas públicas.
2. Em 2000, a chegada da extrema-direita ao poder na Áustria, através de uma coligação em tudo idêntica àquela que desde esta semana assegura a governação daquele país, suscitou uma onda de protestos internos e internacionais de vasto alcance e originou uma tomada de posição especialmente dura por parte da União Europeia, a qual colocou aquele país sob vigilância. Nada disto aconteceu agora, o que levou alguns comentadores e analistas a falarem do risco de uma banalização da extrema-direita europeia. Parece-me óbvio que esse risco existe e até por isso a atitude adoptada face à Polónia não poderia ter surgido em melhor ocasião. Estabelece critérios e determina fronteiras inultrapassáveis.
A atribuição à extrema-direita, por parte do primeiro-ministro conservador, de quatro pastas tão significativas como o Interior, os Negócios Estrangeiros, a Defesa e os Assuntos Sociais não augura nada de bom. Pelo contrário, permite antever uma reorientação no sentido negativo da política externa austríaca e uma radicalização potencialmente xenófoba no tratamento da questão dos refugiados e dos imigrantes. Este recém-empossado governo já se estreou muito negativamente, ao provocar um conflito diplomático com a Itália a propósito do território do Alto Adige. Há a assinalar nesse conflito o aparente regresso de um etno-nacionalismo austríaco deveras criticável. A União Europeia vai com certeza dedicar especial atenção ao país alpino. Bom seria que o Partido Popular Europeu, onde convivem representantes da mais moderna e democrática direita europeia com alguns sectores menos recomendáveis, se empenhasse também numa acção de vigilância do Partido Conservador austríaco, que é dessa família política.
3. Ocorra o que ocorrer hoje nas eleições catalãs, uma coisa parece-me certa: a opção pela declaração unilateral da independência está esgotada. Agora haverá que superar a tentação pela representação binária que opõe nacionalistas e constitucionalistas e que valorizar uma abordagem mais gradativa, que saliente a diversidade e ao mesmo tempo a relativa proximidade dos múltiplos pontos de vista que estruturam a opinião pública catalã. Não há homogeneidade nem no bloco nacionalista, nem no designado bloco constitucionalista. A grande probabilidade de nenhum deles ter maioria absoluta contribuirá decisivamente para a clarificação do debate político catalão. Contrariamente ao que por vezes somos levados as pensar, o que clarifica a vida pública não é a absoluta contraposição entre o preto e o branco, mas antes a completa determinação em valorizar e compreender os múltiplos matizes de que se compõe o cinzento.