Uma declaração de amor de um cinéfilo ao deserto
João Meirinhos é o único português num projecto que leva a sétima arte aos povos esquecidos. Já não viaja “só para ir a sítios giros” e sonha dotar aldeias remotas de África com cinema a energia solar.
— Bora fazer cinema com os putos em África?
Foi esta a mensagem que João Meirinhos recebeu em 2010, vinda de um amigo italiano que conhecera em Erasmus. O PDF do plano primordial chegou a seguir: “O Burkina Faso é aqui e nós vamos para lá.” João disse que sim. E, em 2011, o sonho cumpriu-se. Hoje, o Cinéma Du Désert já vai na sexta expedição. A bordo de um camião de bombeiros, o projecto apoiado pela organização não-governamental Bambini nel Deserto leva cinema gratuito a quem não tem nada.
João já fez quatro viagens com o cinema móvel alimentado a energia solar idealizado pelos italianos Davide Bortot e Francesca Truzzi. Da maior dessas expedições — a viagem de nove meses Paris-Mongólia-Berlim — saiu uma exposição fotográfica sobre “o limbo entre presença e ausência na mente de quem viaja longas distâncias por terra”. Com paisagens fotografadas a bordo do camião, vídeos e poemas de autoria própria, ganhou o Concurso Artes & Talentos de 2017, promovido pela Fundação da Juventude.
Mas de Portugal até esse camião o percurso foi atribulado. Nascido (em 1984) e criado em Lisboa, licenciou-se em Ciências da Comunicação. Não gostou do curso — era “bastante teórico” para um miúdo que ansiava por novas experiências. Mas, aos poucos, deixou-se encantar pela variante de cinema. Em 2003, pegou numa Sony Hi8 que encontrou em casa e fez dela companheira: “Durante uns quatro anos, estava sempre com a câmara na mão, filmava tudo o que me aparecesse. E fui criando uma relação com o filme experimental.”
Estagiou em cinema publicitário, mas os “ideais adolescentes de mudar o mundo” colidiram com a profissão. Também teve algumas ideias para cinema de ficção, mas queria que a sua arte tivesse um “intuito altruísta”. Inevitavelmente, apaixonou-se pelo documentário, cada vez mais fascinado pela área da antropologia. Em 2005, fez o seu primeiro filme do género, sobre um sem-abrigo que vivia no metro, o Salva-Dor.
Desde cedo, encaixou-se numa fatia de jovens que “não estavam contentes com viver na cidade, que não queriam um emprego fixo e que tinham uma criatividade louca”. E não encontrava, no seu país natal, um lugar para si. Por isso, fez as malas e partiu, no Verão de 2008, para voltar quatro anos depois. Correu a Europa várias vezes de comboio e à boleia e, por entre viagens, envolveu-se em projectos ecológicos, casas ocupadas e movimentos de anti-sistema e autogestão.
Foram estes alguns dos interesses em comum que o uniram ao casal italiano. E isso reflecte-se nos filmes que o grupo leva ao deserto — “um deserto real”, mas também “um deserto metafórico” pela “falta de acesso a coisas que damos por adquirido, como o cinema, quando metade do mundo não faz ideia do que isso é”, explica João. No catálogo, não há Hollywood. Há filmes de animação para os miúdos e documentários sobre temas como a ecologia e a globalização para os graúdos — Home, Baraka, Samsara e Babies são alguns dos títulos. Até já passaram Charlie Chaplin — a família doou os direitos, para exibirem filmes nos campos de refugiados na Grécia e em África.
Mas a estadia nas aldeias esquecidas não finda com o fim do filme. Pelo contrário: com o cinema “abrem-se as portas da comunicação” com os locais, para que o grupo conheça os seus problemas e perceba no que é que pode ajudar.
Já criaram uma rádio que funciona a energia solar numa aldeia do Mali. Já montaram uma garagem na capital do Burkina Faso, onde “os miúdos [sinalizados pela assistência social como problemáticos] podem aprender os básicos de mecânica” e onde são dadas aulas de francês, inglês e de computadores — um feito que quer contrariar a epidemia de crianças que pedem na rua. Até já chegaram a montar uma bomba de água a energia solar num oásis no sul de Marrocos. E, mesmo no meio do nada, o grupo está sempre atento à sua pegada ecológica e planta árvores por onde quer que passe.
Qualquer um pode juntar-se ao projecto, mas não é qualquer um que se aguenta lá: “Há sempre um percentil de voluntários que endoidece e quer desistir”, revela. E não é caso para menos: “Imagina: estás na Mauritânia, que é só animais e deserto. E, quando entras no Mali, logo na fronteira, há crianças seminuas por todo o lado, a agarrar a tua mão e a pedir o equivalente a 15 cêntimos. Entrar nessa bolha cultural é complicado, demora o seu tempo.”
Actualmente, João está em solo europeu a angariar financiamento para as próximas viagens. Em Fevereiro, foi ao Idea Camp 2017, em Madrid, apresentar uma ideia que revolucionaria o projecto: deixar um cinema funcional num campo de refugiados com um projector que funcionaria a partir de energia cinética retirada de uma bicicleta. Uma ideia que os activistas queriam aplicar na Grécia e depois levar para a Turquia, onde sentem que há maior necessidade de entretenimento, de distracção: “Temos mais reacção ao cinema da população em campos de refugiados do que em África. Porque é um grande número de pessoas presa, sem nada que fazer, com memórias traumatizantes na cabeça.” Não venceram o concurso, mas a ideia não desvaneceu.
Entretanto, até ao final do ano, o grupo tem pela frente uma tour intensiva no Burkina Faso, com 20 sessões de cinema, em 20 aldeias diferentes, em 22 dias. Depois, João gostava de “atravessar a Itália de alto a baixo e produzir um documentário sobre imigrantes no país”.
Hoje, este cinéfilo não seria capaz de “viajar só para tirar fotografias e ir a sítios giros”. O sonho, esse, não o larga: dar a volta a toda a costa de África e dotar várias aldeias de pequenos cinemas solares.