A ciência cidadã que ajuda a contar as histórias de Algés
O projecto Histórias de Vida começou em 2014 e entretanto já é também um livro e um site. Memórias felizes, às vezes dramáticas, de outros tempos contadas no nosso tempo
Quando nos anos 1960 as meninas do Liceu de Oeiras saíam com as suas batas brancas, havia quem lançasse o alerta: “Lá vem a praga da formiga branca!”. As batas, recorda Magda Paraíso, tinham vantagens (permitiam, por exemplo, escrever cábulas nas bainhas) mas davam muito nas vistas e foi assim que ela e as amigas foram apanhadas e levadas ao reitor no dia em que decidiram sair da escola para ir para casa dela aprender a dançar La Yenka, êxito da dupla Johnny e Charley.
Já nessa altura a socialite Lili Caneças tinha a arte de chamar a atenção sobre ela – “deixava a bata na escola e tinha sempre uns vestidos chiquíssimos” e as outras raparigas ficavam, de boca aberta, a vê-la passar até à estação de comboio.
As recordações de Clotilde Almeida Moreira são outras. Lembra-se bem de atravessar a Marginal e ir para a praia de Paço de Arcos, onde havia um banheiro muito engraçado que distraía os miúdos com uma cantilena sobre comer toucinho. Maria Aguiar não esquece o grupo de teatro Primeiro Acto, “sítio de cumplicidades”, de medo e de solidariedade, com a adrenalina a subir por se saber “que a PIDE podia entrar a qualquer momento e enfiar-nos na ‘ramona’”.
Branca Ruas, filha do actor Fernando Ruas, mais conhecido pela sua personagem do Menino Tonecas, passou da “vergonha e desconforto” por não perceber porque é que as pessoas se riam do pai quando o encontravam nas ruas de Algés, para “a admiração e o orgulho” por perceber que fazer rir os outros era um talento. Um orgulho semelhante ao de Ana Paula Guimarães pelo seu pai, o “Alberto das manteigas”, o fundador da Zinia, loja de comida famosa em Algés. Outra mulher cheia de orgulho é Manuela Carvalho, que, durante quatro anos, viu o pai, o engenheiro Mário da Fonseca, trabalhar na construção das maquetas da Exposição do Mundo Português nos jardins da Quinta do Duque de Cadaval, em Pedrouços, onde viveram durante esse período.
António Bessone Basto nunca esquecerá o que o Sport Algés e Dafundo significou para um miúdo que nasceu com problemas motores, como ele, e que aprendeu a superá-los ali, numa luta difícil mas que acabou por vencer. Tal como José Florêncio não poderá apagar da memória a tragédia das explosões que de vez em quando aconteciam na Fábrica da Pólvora. “Quem estava lá dentro não podia escapar. Vinha toda a gente a correr de Barcarena” para ver se tinha sido algum familiar a morrer dessa vez. Quem lá trabalhava sabia que “aquilo podia rebentar”, mas também sabia que era preciso sustentar a família.
As histórias foram surgindo assim, cada um a procurar na memória episódios cómicos ou dramáticos para poder partilhar. O projecto Histórias de Vida começa em 2014 na Biblioteca de Algés por iniciativa de Ana Isabel Santos, que na altura ali trabalhava e decidiu iniciar “um trabalho de recolha e registo de histórias de vida com pessoas nascidas antes de 1955”.
Helena Abreu, que acabou por realizar uma investigação sobre o episódio da explosão do Paiol do Carrascal na madrugada de 26 de Novembro de 1967, depois das terríveis cheias da noite anterior, fez parte do grupo pioneiro do Histórias de Vida. Apesar de ter vivido em Algés de forma intermitente, acabou sempre por voltar e também ela recorda o Liceu de Oeiras, os pavilhões com as suas esplanadas e “o momento vivo e brilhante da história de Algés”, nos anos 60 e 70, quando era ponto de encontro de estudantes universitários e atraía pessoas de toda a cidade, com a sua vida cultural intensa que passava também pela livraria Espaço e pelo grupo de teatro Primeiro Acto.
As memórias foram surgindo – 18 sessões, mais de 50 horas de gravações –, entre 2014 e 2015, e acabaram registadas no livro Histórias de Vida, editado em 2016 pela Biblioteca de Algés. Ganharam depois um outro fôlego quando a empresa Media Shots se juntou ao projecto e ajudou na criação de um site (historiasdevida-cm-oeiras.pt) no qual as memórias pessoais passaram a ter outro espaço e profundidade, com pequenos vídeos, de cerca de três minutos, que juntam os relatos dos participantes, imagens que os próprios guardavam e outras de Algés em diferentes épocas.
A certa altura do processo, passadas as curiosidades das recordações pessoais, todos sentiram que “era preciso contar histórias que dissessem alguma coisa ao grupo”, resume Helena. “As coisas foram afunilando e começámos a perceber que estávamos todos a querer fazer a história local”.
Revitalizar essa memória colectiva ao mesmo tempo que promovia “a participação cidadã, as dinâmicas de grupo e o combate à solidão” eram precisamente objectivos de Ana Isabel Santos, que entretanto percebeu que o grupo tinha vontade de ir mais longe. Surgiu a ideia de trabalharem as cheias de 1967, que marcou de forma trágica a memória local, partindo não apenas das memórias pessoais mas de um trabalho de investigação com pesquisa em arquivos, procura de fontes, realização de entrevistas – um trabalho de ciência cidadã que permitiu reunir informações e histórias que até aí não estavam sistematizadas.
O resultado é o colóquio Rios de Lama – Evocar as Cheias de 1967 em Oeiras, que aconteceu este sábado na Biblioteca Municipal de Oeiras e no qual, entre vários outros trabalhos realizados pelos elementos do grupo, Helena Abreu apresentou o que entretanto descobriu nas suas pesquisas sobre a explosão do Paiol do Carrascal a 26 de Novembro de 1967.
Este artigo encontra-se publicado no P2 caderno de domingo do PÚBLICO