Que aconteceu entre Junho e Outubro?

A saída de cena de Passos Coelho é o elemento que falta na compreensão do que foram as últimas semanas — e do que está para vir.

Um dos tópicos mais glosados nas últimas semanas é a mudança de posicionamento do Presidente da República face ao Governo que se exprime no contraste entre a sua intervenção pública de meados de Junho, em Pedrógão Grande (quando afiançou que fora feito o humanamente possível em tão trágicas circunstâncias), e o discurso à nação de 17 de Outubro, a partir de Oliveira do Hospital, em que reafirmou a independência e a ampla latitude de poderes que entende possuir, e com as quais efectivamente criticou abertamente e balizou a actuação futura do primeiro-ministro.

Esta sua intervenção lembrou um discurso de índole semelhante proferido por Jorge Sampaio na tomada de posse do governo de Santana Lopes — talvez os dois momentos mais salientes em que Presidentes se sentiram à vontade para afirmarem uma visão lata dos seus poderes em relação aos governos, estribados na noção de dupla responsabilidade do primeiro-ministro perante o Parlamento e o Presidente da República.

Desta constatação partem duas linhas de argumentação. Uma responsabiliza a gestão atabalhoada que António Costa fez de um Verão atribulado (incêndios, furto das armas em Tancos), culminando na sua infeliz comunicação ao país de 16 de Outubro. António Costa teria assim aberto uma janela de oportunidade para o Presidente vir exigir — é esse o termo — “um novo ciclo” com novos rostos, novas estruturas, novas medidas orçamentalmente significativas, ou seja, transmitindo a ideia de que se trataria de um Governo sob tutela. Creio que a oferta da oportunidade ao Presidente, que soube ler melhor do que ninguém a situação de desamparo que se apoderou de muitos portugueses, não explica tudo.

A segunda linha de argumentação centra-se na especulação sobre as relações pessoais e institucionais entre Chefe de Estado e chefe do Governo. Terá havido uma quebra de confiança recíproca — ora porque o Governo demonstrou negligência e não terá estado à altura do que lhe era exigido em termos do dever de protecção dos cidadãos como o Presidente presumia, ora porque o Presidente estaria ao corrente das medidas que estavam na forja e terá vindo exigir o que sabia estar a caminho, com estrondo publico que beliscou o amor-próprio e a imagem do Governo. A figura cheia de bonomia a que já chamaram de “Costelo”, subliminarmente apontando para uma certa forma de co-governação, ter-se-á evaporado...

Creio que ambas as linhas de argumentação têm um fundo evidente de verdade, mas falta-lhes qualquer coisa. É que entre Junho e Outubro ocorreram... eleições autárquicas.

É sabido que Marcelo anunciou, desde o dia da sua tomada de posse, que a fórmula governativa, legitimada pelo Parlamento, teria de enfrentar um primeiro obstáculo politico por ocasião das eleições autárquicas. Até que o povo se pronunciasse sobre o desempenho do Governo e da nova maioria parlamentar, não seria o Presidente que iria desestabilizar o país. Nisso se distanciou da liderança das forças partidárias de direita, que desejavam ver o Parlamento dissolvido logo que decorridos seis meses sobre as eleições anteriores, o que Cavaco não pudera fazer. Passos não lho perdoou. Mas tal não significou que o Presidente, naturalmente vinculado a uma sensibilidade de centro-direita, tivesse passado qualquer cheque (muito menos em branco) à “geringonça”, da qual naturalmente desconfia. Se o resultado fosse — como muitas vezes é em eleições de “segunda ordem” que ocorrem no meio do ciclo eleitoral parlamentar — mau para a “geringonça”, o Presidente teria então uma oportunidade de invocar a necessidade de refrescar a legitimidade do Governo e convocar legislativas antecipadas.

Mas esta sua atitude de remeter para as eleições autárquicas uma avaliação nacional do desempenho das forças políticas não se limitava, como muitos pensaram, a um exame ao Governo — implicava igualmente um exame às oposições.

Se das eleições autárquicas, apesar de um eventual resultado digno da “geringonça”, resultasse um reforço da atitude radical de Passos Coelho, que inviabiliza qualquer espécie de dialogo entre os partidos centrais dos nosso sistema politico, como é bem visível nesta legislatura, a natural inclinação do Presidente para diminuir a dependência de António Costa de acordos à sua esquerda seria a de continuar a dispensar-lhe o tipo de colaboração que marcou até há pouco o seu mandato — e que não pode ser vista apenas como um apoio desinteressado, mas como uma forma de exercer uma discreta mas eficaz influencia sobre algumas opções governativas em contraponto com os parceiros de esquerda. Poderia usar, uma vez ou outra, uma palavra mais dura, ou exercer aqui ou ali o seu poder de veto ou de iniciativa “estrategicamente concertada”. Mas creio não errar se aventar a hipótese de o Presidente preferir, no caso de o PSD se manter amarrado a Passos Coelho, uma maioria absoluta de António Costa que o libertasse dos compromissos da “geringonça”. Sendo certo que é dado como adquirido que o papel dos Presidentes pode crescer quando não há maiorias sólidas no Parlamento, e daí decorra que as suas primeiras preferências se podem dirigir a situações de parlamentos com soluções de geometria variável que lhes alarga o campo de intervenção e o poder de manobra, uma solução inimiga da óptima seria a de tornar dispensável o apoio da CDU e do BE ao Governo em funções. Privado de uma ala direita do Parlamento que pudesse mobilizar para soluções abrangentes dado o radicalismo que tem demonstrado na presente legislatura, Marcelo não desdenharia colaborar no afastamento da esquerda radical da esfera governativa por via do reforço de António Costa.

Ora, as eleições autárquicas trouxeram uma retumbante vitória do PS, e a “geringonça” aguentou-se na prova de fogo. O diabo anunciado por Passos Coelho nem um ano depois chegou! E a hipótese de eleições antecipadas esfumou-se. Passos entendeu que o seu tempo estava terminado, e deu o lugar a outro. Se bem que se especule que nem Rio nem Santana seriam a escolha preferencial de Marcelo (apesar do deslize que foi a audiência a Santana Lopes...), ambos podem vir a proporcionar uma viragem no PSD para uma posição que abra as portas a entendimentos com os socialistas, tal como sucedeu no passado — e não menos quando Marcelo liderava o partido. Com um PSD disponível como não esteve nestes últimos anos a entendimentos com o PS — sem necessitar de formalizar um governo de coligação —, será possível que António Costa sinta a tentação de ser o que Mário Soares chamava de “partido charneira”, e negoceie à esquerda e também à direita. Ou seja, que regresse um Parlamento com maiorias de geometria variável. E que a margem de manobra presidencial venha a crescer. A história tem abundantes casos para apresentar, sendo que com uma forte tendência mais para a direita do que para a esquerda... Para isso, uma maioria absoluta dos socialistas seria uma carta fora do baralho: dava-lhes um poder que noutras circunstâncias residiria mais para as bandas de Belém...

Tenho, pois, que a saída de cena de Pedro Passos Coelho é o elemento que falta na compreensão do que foram as últimas semanas — e do que está para vir. Para além das considerações pessoais (que não são de menosprezar), há considerações políticas de fundo. E o Presidente não se coibiu de, muito recentemente, elencar entre as prioridades do seu magistério contribuir para “que a oposição seja forte, para o caso dos portugueses, no momento das eleições, que decorrem ainda durante o mandato presidencial [i.e., em 2019], quererem escolher outra solução de governo”. Até que a nova liderança do PSD tome o pulso ao partido e se apresente com uma proposta clara, o Presidente vai fazer um compasso de espera. Mantendo sempre a cordialidade e bonomia que tanto contribuem para a sua popularidade, que é como quem diz, para o alargamento das fronteiras do seu poder efectivo de influenciar o decurso dos acontecimentos. Depois se verá — e o Presidente já mostrou várias vezes que é um hábil leitor da situação política, não um espectro fixado a uma ideia que obscurece a sua capacidade (e vontade) de guiar o pais para águas menos agitadas do que aquelas que a “geringonça” tem inscritas na sua matriz reformadora. E o primeiro-ministro terá então ensejo de demonstrar quão convicto está de que a “geringonça” e uma política claramente voltada para a esquerda representam uma solução com futuro.

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