Deixemo-nos curar pela música de Kelly Lee Owens
Aos 18 anos, numa clínica, teve que lidar com doentes terminais. Dez anos depois, lança o tipo que álbum capaz de reconciliar-nos com a vida, num testemunho electrónico rodeado de emoção que nos abraça com elegância. “Sim, a música pode ser terapêutica”, diz-nos.
Aos 18 anos, Kelly Lee Owens mudou-se do País de Gales natal para Manchester, Inglaterra, para ser auxiliar de enfermagem numa clinica de tratamento do cancro, quando se preparava para seguir a carreira de enfermeira. “Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida”, diz-nos a compositora, produtora e cantora. Conta-nos isso cerca de dez anos depois, no exacto momento em que acaba de lançar o homónimo álbum de estreia. “Lidar com doentes terminais confrontou-me com a transitoriedade da vida. Pode soar dramático mas estar rodeada de morte inspirou-me ainda mais a viver. Conheci pessoas incríveis, com uma vitalidade contagiantes. E ao mesmo tempo foi um período onde me interroguei muito sobre os processos curativos e o que eu própria desejava para a vida no futuro.”
Desde que se lembra que sempre nutriu grande fascínio pela medicina. “O universo dos médicos e o poderem salvar vidas, era algo que me maravilhava”, afirma. A prática clínica não a fez desacreditar disso, mas dir-se-ia que complexificou o seu pensamento. “Comecei a perceber que existem outras actividades e práticas que, embora de forma indirecta, também salvam vidas: a música é uma delas. Desde que feita com honestidade e recebida com discernimento, permitindo-nos entender emoções que nos parecem indecifráveis. Vivemos num mundo demasiado dependente de medicamentos, drogas e quimioterapias, quando na maior parte das vezes o foco deveria ser o nosso estado emocional, o bem-estar individual e social, e aí a música, a arte e a criatividade são essenciais."
Como é evidente, Kelly não tem a pretensão de dizer que a música cumpre um papel semelhante ao da medicina. Mas afirma, com propriedade, que a música, tal como influencia a comunicação ou o ambiente, também afecta a saúde física e psicológica. “Sim, nesse sentido, desde que aproveitada com sabedoria, a música pode ser terapêutica.”
A sua música, por exemplo. Ao primeiro álbum cria de imediato o seu próprio universo sonoro, entre a canção pop sonhadora e a austeridade electrónica, num todo que resulta fluido, orgânico e atmosférico. As composições conseguem ser em simultâneo fantasistas e de impacto certeiro. Em Arthur – dedicada a Arthur Russell, o músico e compositor que juntava pop e experimentalismo e que acabou por morrer na obscuridade, em 1992, tinha então 40 anos – ouve-se a chuva e os pássaros a cantar antes de entrar o ritmo sintético e uma voz abstracta, misto de bucolismo e electrónica indutora ondulando pelo espaço. Em CBM os movimentos mecânicos das linhas de baixo entrançam na voz que celebra “colours, beauty, emotion”, desaguando num cenário sintético.
Na maior parte dos temas os paradoxos (temperaturas quentes e frias, ritmos musculados e vaporosos, silêncios e palavras, deslocação sonora e serenidade, repetições hipnóticas e intervalos ambientais) são resolvidos com naturalidade, num disco que tanto convida à dança a dois como à meditação individual. O que lhe interessa é o potencial emotivo do som. “Gosto de música que nos submerge e que em simultâneo nos transporta, conduzindo-nos para outro lugar ou que nos faz divagar”, afirma, acrescentando que a música que a motiva “é aquela que nem sempre conseguimos decifrar numa primeira camada, mas que é capaz de provocar curiosidade e que nos impele à sua compreensão.”
Para além do americano Arthur Russell, cita o inglês Matthew Herbert, os suecos The Knife, a islandesa Björk ou a artista e escritora japonesa Yayoi Kusama como referências. Não é tanto a música, é a forma inquieta e personalizada como esses artistas estão nela que lhe agrada. De Björk, que conheceu quando trabalhava numa loja de discos londrina, destaca a sua “curiosidade insaciável” que ela própria teve oportunidade de comprovar, vendo-a a pesquisar discos dos mais diferentes quadrantes estéticos.
De coração aberto
Kelly nasceu no norte do País de Gales e esse facto continua a marcá-la. “Cresci no meio de pessoas fortes, em especial mulheres, gente generosa, frontal, de coração aberto e continuo a privilegiar essa forma de estar na vida”, declara. Depois seguiu-se Manchester onde, nos intervalos da clínica, começou a organizar e a assistir a concertos o que acabou por afastá-la da enfermagem, tendo inclusive tocado baixo com o grupo The History of Apple Pie. A electrónica só a começou a interessar quando se mudou para Londres, onde ainda reside, trabalhando aí em lojas de discos. Numa delas conheceu os músicos Daniel Avery e James Greenwood (Ghost Culture) o que viria a revelar-se fundamental.
Com eles partilha a predilecção por música física, de linhas de baixo pulsantes e ambientes que convidam a uma certa transcendência ou que pelo menos reflectem e projectam estados de espírito. Música digital e analógica de cariz dançante com qualquer coisa de melancólico, que tanto se inspira no tecno mais caloroso, como na electrónica mais abstracta.
Com Daniel Avery haveria de colaborar vocalmente em três temas do excelente álbum deste – Drone Logic (2013) – mas mais do que isso, com ele aprenderia a produzir. Em 2015 lançou o primeiro máxi-single e depois de um tema seu iluminar um desfile de moda de Alexander McQueen surgiria o contacto da editora norueguesa Smalltown Supersound e o lançamento do EP Oleic a que se segue agora o álbum de estreia.
“A gravação deste álbum acabou por resultar num processo gradual, embora sinta que existe unidade ao nível da produção. Mesmo quando os temas se aproximam mais da dança expõem emoção, escapismo ou espaço. É algo que a que conscientemente reajo bem e é isso que também quero oferecer a outras pessoas de uma forma honesta.”
Em criança lembra-se de ir para os montes junto de sua casa e ficar horas a perscrutar o céu. “Vivia isolada mas isso impeliu-me a escrever desde muito cedo o que foi bom”, esclarece, dizendo que sempre escreveu poemas e pequenos contos. “O que não faz de mim grande poetisa ou escritora”, ri-se, “mas tenho o treino suficiente para que as palavras me saiam com facilidade.” Com a música é diferente. “As palavras são mais dependentes do som que o contrário. Respeito-a. É em função dela que escrevo e por norma coisas simples, como se fossem uma extensão natural do ambiente emocional e sonoro.”
A composição, produção e voz é inteiramente dela, com uma excepção, o tema Anxi, que tem palavras e voz da norueguesa Jenny Hval. “Já nos conhecíamos quando um dia, movida pela preguiça, e aborrecida por compor e criar melodias a resolvi desafiar”, ri-se Kelly, contando que algumas horas depois Jenny Hval lhe enviou de imediato uma gravação. “Fiquei maravilhada porque a faixa fluía genuinamente e apenas tive que adicionar-lhe pequenos retoques. Foi um alívio perceber que a minha preguiça havia originado uma colaboração tão produtiva o que comprova a minha teoria: às vezes mais vale não fazermos algumas coisas, pelo menos de forma forçada, para que a criatividade possa soltar-se.”
Tal como Jenny Hval, também Kelly tem reflectido sobre a (des)igualdade de género, tema que ressurgiu nos últimos tempos no tecido cultural e político com grande impacto, embora a sua posição seja mais integradora do que militante. “Às vezes dou por mim a pensar: como é possível ainda estarmos a debater estes temas? Não tenho resposta clara, mas o facto de vivermos em sociedades patriarcais durante tanto tempo possa ser uma explicação. Agora é importante dizer que muitos homens são progressistas e reconhecem que a igualdade de género é imperiosa. É com esses homens que nos temos de aliar e colaborar. Precisamos de nos unir e não de divisionismos, porque para isso já nos bastam alguns políticos.”
No caso do universo da música diz nunca ter sentido qualquer descriminação. “Limitei-me a fazer o que tinha a fazer e se existiu alguém que me ajudou nesse campo foram alguns dos meus amigos homens mais próximos. Mas é verdade que ainda existe uma espécie de obstáculo anímico que impede as mulheres de chegar à música, o que acaba por ser frustrante, embora a o assunto vá muito para lá das questões de género.” E conclui: “chamem-me romântica, mas continuo a acreditar nesse poder da música em juntar pessoas de uma forma real, como se fosse uma oferenda e isso derruba todas as barreiras, sejam de género ou outras.”
Para já prepara várias apresentações ao vivo, algumas delas contando com três músicos, mas na maior parte delas será apenas ela, com teclados e voz. “Quando actuo como DJ ou em concerto detesto a sensação de que em palco estou apenas eu, isolada e apartada do público. Quando isso sucede é porque a coisa está a falhar.” Pelo contrário interessa-lhe criar o tipo de envolvimento em que ela e a assistência partilham do mesmo sentimento de comunhão. “Quando isso acontece deixo de ser eu e a minha música. As canções passam a ser de todos e isso é admirável.”
Quando lhe perguntamos que tipo de expectativa guarda para a recepção ao álbum, ri-se. “Espero que, pelo menos, possa continuar a fazer mais música, embora não tenha como certo que seja isto que quero fazer o resto da vida.” Talvez um regresso à enfermagem? “Mais do que isso, trabalhar sobre a relação entre som, terapêuticas e certas ressonâncias”, afirma. “Já existe alguma investigação nesse sentido muito credível.”
E acrescenta: “Quando comecei a trabalhar com música fui investigando e descobri que existem estudos que comprovam que algumas frequências, tal como conseguem funcionar muito bem ao nível do desbloquear de alguns medos, também conseguem desfazer certos tipos de células cancerígenas.” É um tipo de investigação que ainda necessita de ser aprofundado, mas que tem cada vez mais defensores, esclarece, “daí que deseje experimentar as suas possibilidades.” No seu horizonte está até a curadoria de uma exposição que conjugue arte, som, terapêuticas e frequências.
Até lá deixemo-nos curar pela música imersiva de Kelly.