“Elizabeth Warren foi calada apenas por ser uma voz sensata”

Sarah McCarthy Welsh dirige a organização que ajudou a eleger 250 mulheres para cargos políticos no Massachusetts nos últimos 40 anos. Não acredita em quotas. E acredita na senadora Elizabeth Warren, a voz emergente de oposição a Donald Trump

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Rui Gaudêncio

Directora da associação que promove a eleição de mulheres na política no Massachusetts, EUA, há apenas seis meses, Sarah McCarthy Welsh viu o mundo transformar-se com a eleição de Donald Trump. Para o bem e para mal. Está “preocupadíssima” com a nova Administração, mas tem apoio como nunca no passado. Em voluntários e em cash. Trump acordou muitos americanos, que passaram a estar “interessados” com o que se passa no país. A começar pelos jovens. E isso, acredita Welsh, pode levar-nos a caminhos que nem imaginamos. A Massachusetts Women’s Political Caucus foi criada em 1971 e ajudou a eleger 250 mulheres nestes 40 anos. Aceitam democratas, republicanas ou independentes e colocam uma única condição. “Têm que ser progressistas.” A senadora Elizabeth Warren é uma delas. Convidada pela CIG, Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género, fala hoje, Dia Internacional das Mulheres, na Reitoria da Universidade de Lisboa, às 17h30.

A senadora Elizabeth Warren, do seu estado do Massachusetts, está a emergir como voz da oposição americana contra Donald Trump...
... diria mesmo que é a principal…

É assim que a vê?
A senadora Warren é muito mais do que isso. É uma mulher muito culta, que sabe muito, que se preocupa muito com questões complexas como o sistema bancário e como as pessoas são postas de parte pelo sistema, e que mantém uma forte vigilância sobre a relação cidadão comum versus Wall Street. A sua resposta à nova administração está a ser tão visceral e tão orgânica que ela tornou-se uma voz central no nosso país.

Trump ganhou em parte por causa do seu discurso em defesa do “little guy”, que é também um tema forte no discurso de Elizabeth Warren, a quem os republicanos chamam “populista de esquerda”.
Ainda é cedo. O cidadão comum quer um trabalho seguro, um salário melhor, um futuro melhor. Vai ser interessante ver se Trump consegue concretizar as promessas que fez aos trabalhadores [menos qualificados]. Estamos a meio dos primeiros 100 dias de Administração, mas as políticas nas quais Trump está a concentrar-se — como as casas de banho para transgéneros — não me parece que tenham eco no cidadão comum que vive no interior da América e está a tentar perceber se a sua empresa vai entrar em falência. Trump vai focar-se nas políticas públicas que prometeu? Ainda não sabemos.

Elizabeth Warren vai ser candidata nas presidenciais de 2020?
Sem dúvida que muitas pessoas querem que isso aconteça. Ela sente-se muito encorajada com o apoio que está a receber, mas acho que Warren é o tipo de pessoa que vai decidir se concorre ou não à Casa Branca depois de reflectir sobre onde é que é mais eficaz: no Senado ou na Casa Branca? Neste momento, Warren é extremamente eficaz no Senado como a voz das mulheres e dos trabalhadores [mais pobres].

Gostava que ela se candidatasse?
A missão da minha organização é ajudar a eleger o máximo número de mulheres. Ficaria muito contente se conseguíssemos ajudar a eleger a primeira mulher para a Casa Branca.

A sua organização levou para a rua milhares de pessoas no dia das Marchas das Mulheres…
… 175 mil. Quando as marchas foram pensadas, o nosso objectivo era termos 20 mil pessoas. Depois, percebemos que teríamos 40 mil e depois 60 mil. A certa altura, achámos que a seguradora não ia cobrir a marcha. No dia, a seguradora estava preocupada com o que poderia acontecer, mas porque a polícia de Boston tem muita experiência com multidões e situações difíceis (basta pensar no atentado), concordou em fazer o seguro.

São as duas Américas: muitas mulheres votaram em Trump e muitas mulheres vieram para a rua protestar contra Trump.
Penso que muitas mulheres não acreditavam que ele ganhasse. Nós trabalhamos com muitos estudantes, e muitos são raparigas e estagiárias – e a seguir à eleição muitas estavam em sofrimento e angústia. A minha reacção foi: “Parem de chorar e comecem a trabalhar!”. Há uma parte de mim que gostava que as marchas tivessem acontecido em Outubro…

Para evitar a vitória de Trump?
Não para evitar, mas para mobilizar as pessoas e mostrar às mulheres que os temas pelos quais lutamos há tanto tempo são mesmo importantes. Estas foram eleições muito polarizadas. Isso foi notório pela forma como as pessoas foram tratadas, pela linguagem usada, pelo tom. Quando o Presidente foi eleito, as pessoas ficaram galvanizadas. A marcha de Boston foi concebida como uma coisa pequena mas cresce e até a mãe natureza ajudou! A meio de Janeiro tivemos um dia de Sol, coisa que nunca acontece em Boston! E ali estava eu no pódio, a olhar para um mar de gorros cor de rosa que não tinha fim à vista. A líder da marcha foi a senadora Elizabeth Warren e a multidão, posso dizer, adorou-a, gritou à sua passagem de uma forma… todos gritavam quando a viam.

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Elizabeth Warren foi mandada calar no Senado Brian Snyder/REUTERS

Warren começou 2017 com 4,8 milhões de dólares na sua conta de campanha, mais do que qualquer outro senador democrata a concorrer para a reeleição no próximo ano.
Sim e isso foi antes do episódio do silenciamento, quando ela, “apesar de avisada, persistiu” e continuou a falar.

É um efeito pós-Trump?
No dia em que Warren “persistiu” em falar e foi mandada calar no Senado, a ACLU foi inundada por doações e o sistema entrou em colapso, as pessoas queriam dar dinheiro em nome da liberdade de expressão. É preciso não esquecer que a máquina de angariação de fundos de Warren é nacional.

O novo Presidente ajudou a criar uma atmosfera na qual este tipo de atitude é tolerada no Senado?
Eu nunca vi nada assim no Senado. Eles cometeram um erro — até porque, no dia seguinte, o senador Bernie Sanders levantou-se e leu a mesma carta de Coretta King e não o mandara calar. E esta é a mesma carta que o senador Ted Kennedy leu há uns anos naquela mesma sala do Senado. Havia um precedente.

O episódio acabou por ajudar Elizabeth Warren?
Ela não precisa disso, mas o episódio ilustrou muitas das coisas sobre as quais ela fala e mostrou que uma mulher, senadora num Senado com 100 pessoas, pode ser calada por ler uma carta que não tem nada de incendiário. Foi calada apenas por ser uma voz sensata – e isso é muito perturbador.

O que levou o senador Mitch McConnell a mandá-la calar-se?
Não sei, mas suspeito que se tenha arrependido.

Na sua carta sobre este caso, diz que o episódio “devia chocar a consciência de todos os americanos que se preocupam com a liberdade de expressão”, mas muitos americanos mostram-se contentes com o que está a acontecer no país.
Este episódio vai ser ensinado nas aulas de educação cívica nas escolas e nos cursos de Ciências Políticas. Foi verdadeiramente escandaloso. As nossas vidas continuam no dia seguinte, mas este episódio vai ficar na história e vai deixar um legado. Não esqueça: estamos nos primeiros 100 dias da Administração. Donald Trump é o nosso Presidente e muitas pessoas o apoiam. E, pensando no meu país, desejo-lhe sorte. É isso que nós fazemos nos EUA. Acreditamos na transferência de poder e aceitamos os vencedores. Mas Trump fez muitas promessas às suas bases de apoio e temos de ver se ele consegue cumprir essas promessas.

A proposta de ser “a primeira mulher Presidente” não foi suficiente para Hillary Clinton. Além do apelo populista de Trump, há também uma maturidade em relação à igualdade de género?
Não queremos uma Presidente eleita por causa das quotas! Ser Presidente dos EUA é um trabalho muito difícil. Vai acontecer, mas não pode ser por causa de uma lei. Não consigo conceber a ideia de quotas para mulheres no poder. No Massachusetts, 26% dos membros da câmara estadual são mulheres, mas 85% das posições de chefia são ocupadas por mulheres.

Como explica isso?
As mulheres são líderes. Naturais. Quando chegam, ocupam as posições de liderança. Um dia alguém me disse: “Não fiques presa ao 26%. Pensa no que esses 26% fazem.” O que as mulheres conseguiram é mais importante do que a soma das partes. A nossa abordagem é simples: as mulheres são metade da população, logo, devem ter uma representação equivalente no governo. Não acreditamos nas quotas nem na “acção positiva” que beneficie as mulheres. Queremos que haja mais mulheres no poder de uma forma orgânica. Mais mulheres eleitas significa mais mudanças em políticas públicas importantes para as mulheres e para as famílias.

Por exemplo?
Em Agosto, foi aprovada uma legislação pela câmara dos representes estadual sobre o salário igual entre homens e mulheres. As mulheres no Massachusetts ganham 77 cêntimos por cada dólar ganho pelos homens, pelo mesmo trabalho. As mulheres negras ganham 67 cêntimos. Há anos que conhecemos estes dados que ilustram de forma clara esta discrepância. E, no entanto, durante 17 anos, a lei sobre igualdade salarial arrastou-se na câmara legislativa. Com a eleição de mais algumas congressistas mulheres, finalmente avançámos. Foram as mulheres legisladoras que conseguiram trazer esta legislação para o topo da agenda e que conseguiram que fosse aprovada.

Já está em vigor?
Desde Janeiro. Agora está a ser implementada.

O que diz essa legislação?
Que os empregadores têm de pagar o mesmo salário aos homens e às mulheres. O estado e a câmara de Boston estão a assumir a liderança nas acções de formação, ensinando as pessoas a negociar os seus salários. Os dados vão ser confidenciais, mas terão de ser comunicados ao Estado, de modo a que haja monitorização. É bom aprovar legislação, mas ela tem de ser implementada. E isso por vezes é o mais difícil. É a primeira vez que temos uma lei destas no Massachusetts — e penso que é a primeira nos EUA. Talvez uma câmara de representantes só com homens tivesse lá chegado, mas o facto é que — de forma clara — foram as mulheres congressistas que lideraram este processo. Também devo dizer que o governador, que é um homem, assinou a lei. Houve um trabalho conjunto.

Em síntese: é importante ter mulheres no poder, mas sem quotas. Qual é a estratégia?
Temos de construir um pipeline de mulheres que querem candidatar-se a cargos políticos. O que é difícil quando vemos a forma como Hillary Clinton ou a jornalista Megyn Kelly foram tratadas. Hoje, o tom no debate público é mais negativo. As pessoas estão a permitir e a aceitar este tom. Para concorrerem, as mulheres têm primeiro que dizer: “Ok, vou ser vítima de ciberbullying, vou ser arrastada para a lama”. A nossa tarefa é insistir e dizer que o nível de civismo tem de ser recuperado.

Depois das Marchas das Mulheres, como é que se usa essa energia de uma forma que não se limite ao protesto de rua?
Desde a marcha, todos os dias há mais mulheres que nos perguntam: “Como posso ajudar?” Para algumas, a resposta será candidatarem-se a cargos políticos, para outras, contribuírem com doações. Desde Janeiro, a nossa angariação aumentou 1200% e o número de membros 458%, os nossos seguidores nas redes sociais aumentaram 40%. O que digo? Envolvam-se! Participem!

Por causa de Trump, a sua organização é hoje mais forte?
Não direi “por causa de Trump”, mas é verdade que as pessoas estão muito mais interessadas e que a organização está mais forte.

Ironia das ironias: as mulheres vão acabar por agradecer a vitória de Trump?
É muito irónico de facto que, desde a sua vitória, seja a ACLU, os comités políticos de apoio a candidaturas políticas de mulheres ou a Planned Parenthood, um vasto espectro de organizações, que também inclui as de luta contra as alterações climáticas, estejam a ficar mais fortes. Quando pensamos no que foi proposto por Trump e no que pode vir a mudar — desde o Supremo Tribunal à reversão do direito ao aborto — percebemos que está para além das mulheres, mas são as mulheres que estão a dizer: “O que posso fazer para ajudar?” E eu respondo: “Envolve-te, participa, faz, gestão de redes sociais, angaria dinheiro, passa um cheque.” Quanto mais dinheiro tivermos, mais mulheres poderemos ajudar nas suas campanhas eleitorais.

Este aumento de fundos, voluntários...
... e de interesse.

... é o lado positivo da vitória de Trump, que atraiu para a vida pública pessoas semi-adormecidas?
Sim. Vai ser muito interessante ver o que acontece com os jovens millennials. Muitas pessoas desta geração viveram até agora sem se preocuparem com o direito à escolha e dão por garantidas coisas que estão a ser postas em causa. Quando estes direitos começarem a ser discutidos — se houver um recuo — os jovens americanos vão acordar de formas que não conseguimos imaginar. As marchas aconteceram um dia a seguir à cerimónia de tomada de posse de Trump. Como é que construímos a partir desse pico de entusiasmo? Acredito firmemente que podemos construir algo a partir daqui porque as políticas que estão a ser discutidas vão galvanizar ainda mais pessoas do que as marchas, porque vão ser verdadeiros questões centrais, como o planeamento familiar. As millennials cresceram num mundo em que a sua pediatra era uma mulher, a dentista era uma mulher, a directora da escola era uma mulher. Elas nem compreendem o que as mulheres antes delas tiveram de lutar. Mas talvez passem a compreender quando as coisas começarem a mudar nos EUA — se isso acontecer.

O líder do Congresso, o republicano Paul Ryan, acaba de prometer cortar os fundos públicos da associação Planned Parenthood.
Isso preocupa-nos muitíssimo. Nós somos aliados da Planned Parenthood. Vamos inundar o congresso com chamadas telefónicas. Os telefonemas resultam. Eles reagem!

Falam mesmo com os congressistas?
Bem queríamos! Falamos com os recepcionistas. Mas se eles recebem 800 telefonemas dos eleitores do seu circulo por dia, o congressista vai saber — é o que importa. Às vezes chegam a desligar os telefones. Este sábado tivemos outra marcha em Boston para apoiar a Planned Parenthood, esteve lá o mayor de Boston e Elizabeth Warren. Agora, o objectivo é concentrarmo-nos no que vamos fazer. Chamamos-lhe o “espaço das mulheres” e há muito espaço! Quem vai fazer o quê? Vamos para o email, vamos para as conferências! A maior parte das pessoas preocupa-se com o trabalho e com o que ganha — com “o pão e a manteiga”. O que a Administração escolher fazer agora é um indicador das suas prioridades. Vamos ver o que vai fazer.     

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Desde a marcha das mulheres, o número de membros da organização aumentou 458% Tracie Van Auken/EPA
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