O regresso da alma Peneda
Quem andava pela política nos anos 1990 e 2000 não precisava de ser competente, culto, probo ou sequer inteligente. Bastava, como os leões de pedra do Parlamento, guardar a entrada do mealheiro – e manter a pose impante da mediocridade.
Silva Peneda escreveu uma carta aberta no Diário de Notícias onde acusa Passos Coelho de estar a “ferir gravemente a identidade do PSD” por se recusar a apoiar a descida da TSU. O interesse da carta não está na acusação, que nada tem de original, mas na argumentação utilizada, que cruza uma sinopse da história do PSD com a tese de que estamos a assistir a uma traição dos “valores fundamentais” da social-democracia portuguesa. Passos Coelho, o traidor, está, segundo Peneda, a “alienar” o “património político” do partido e a promover a sua “falência”, já que a sacrossanta concertação social representa a “cultura de compromisso” que o PSD deve buscar “de forma incessante”. É caso para dizer: há certas críticas que valem mais do que mil elogios.
Vale a pena analisar a “cultura do compromisso” de Silva Peneda neste caso em concreto. Andemos dois meses para trás. A 19 de Novembro de 2016, o Expresso anunciava em manchete: “Salário mínimo de €557 em risco em Janeiro.” E justificava: “Para conseguir um acordo na concertação social, António Costa pode fasear o aumento em 2017.” Nesse mesmo dia, António Costa recorreu ao Twitter para desmentir categoricamente a notícia: “A manchete do Expresso é falsa. O programa de Governo será cumprido na atualização do salário mínimo.” Dois dias depois, o presidente do PS, Carlos César, confrontado com o protesto dos patrões, fechava a porta a qualquer negociação abaixo desse valor, numa declaração tipicamente socialista: “Não posso interpretar o que os patrões entendem. O que sei interpretar é aquilo que o Governo pretende: que em diálogo e no cumprimento do programa de Governo, seja possível o aumento do salário mínimo nas condições que nós mencionámos.” Diálogo, sim, mas nas condições impostas pelo Governo. Negociar o salário mínimo, com certeza, desde que seja 557 euros. É a isto que Silva Peneda chama “cultura de compromisso”. É esta maravilhosa “concertação social” que o PSD, terrível e despudoradamente, parece que está a trair.
Os patrões, como é óbvio, não tinham grande opção: já que o salário mínimo iria subir a bem ou a mal, aproveitaram as migalhas da TSU que lhe foram postas à disposição. Mas que a “concertação social” esteja resumida a isto, e que seja este o património que Silva Peneda acusa Passos Coelho de estar a destruir, só pode ser uma piada de mau gosto vinda de alguém para quem o Terreira do Paço é o útero do país. Razão tem Francisco Louçã: esta concertação social de 2017 parece, de facto, uma nova Câmara Corporativa. Só que o poder que ela preserva não é, como afirma Louçã, o “poder patronal”, mas sim o poder do bom e velho Estado oligárquico, para o qual Bloco e PCP também contribuem com denodo.
Chamar a isto “cultura do compromisso” é uma ofensa para a cultura e para o compromisso. Isto é tão-só a batida cultura do deixa-andar-que-assim-está-bem. É o óleo que faz girar há décadas a máquina oligárquica portuguesa, feita de respeitáveis figuras do “centrão”, como Silva Peneda. Se Passos Coelho está a levar à “falência” este “património político”, essa é uma óptima razão para gostar dele. Almas Penedas é que não – elas representam o regresso do fantasma dos natais passados, quando existia dinheiro a rodos para distribuir. Quem andava pela política nos anos 1990 e 2000 não precisava de ser competente, culto, probo ou sequer inteligente. Bastava, como os leões de pedra do Parlamento, guardar a entrada do mealheiro – e manter a pose impante da mediocridade.