1. Baile de favela não é a praia da imprensa brasileira. E, no entanto, tirando praia e futebol, nada moverá tantos cariocas toda a semana como esses bailes com milhares de pessoas. O antropólogo Hermano Vianna lutou desde os anos 1980 para levar o baile, em particular o funk, para a academia, e vice-versa, levar a academia para o funk. E durante os anos em que escreveu no Globo (2010-2015) levou também o funk para o seu espaço de colunista. Nesse tempo (que correspondeu à fase em que morei na cidade), a melhor luz possível sobre funk numa coluna de jornal era, assim, a de um estudioso, um especialista. Mas hoje, baile de favela aparece na coluna de uma frequentadora que nasceu, cresceu, mora e trabalha na favela: Ana Paula Lisboa. É uma colunista recente e rara, porque não há tantas mulheres com espaço regular no mais influente jornal do Rio de Janeiro, poucas negras e nenhuma tão jovem (28 anos). Ela não escreve sobre funk, mas sobre tudo o que a cutuca, como todos os colunistas, e isso tanto pode ser baile de favela numa semana, como o morticínio da juventude negra (77% dos jovens mortos no Brasil são negros) ou a polémica da mulher “bela, recatada e do lar” recentemente vendida pela revista Veja como modelo ideal, encarnada no exemplo de Marcela Temer (actual mulher do vice-presidente Michel Temer, que aspira substituir Dilma). Se menciono o funk é só para sublinhar este arco de 2010 para 2016: entre ler um estudioso, homem, e ler uma frequentadora, mulher, sobre um universo (o funk) tão associado a um machismo ostensivo, como parte do hip hop americano, aliás. Mas Ana Paula Lisboa é bem a geração que virou adolescente quando Beyoncé começou a arrasar, e está aí para dizer que ninguém segura as minas se elas não quiserem.
2. As minas são as garotas. Neste arco de tempo em que tudo abanou o bastante no Brasil para ter uma Ana Paula Lisboa a escrever no Globo, também apareceu uma revista online gratuita (financiada por crowdfunding) chamada AzMina para falar de mulheres de A a Z, com Ana Paula na equipa, ao todo 18 mulheres e um homem. “São meninas do Brasil inteiro”, conta-me ela, por telefone. “Escrevem do seu lugar, e eu sou a única do Rio, e da favela.” Um dos muitos projectos que explodiram depois de 2013, ano-charneira, em que o Brasil saiu à rua em protesto. As manifestações diluiram-se após algumas semanas, mas a efervescência continuou, toda uma geração tomando o debate e a acção fora das instituições tradicionais, incluindo os media tradicionais, potenciando as possibilidades da Internet e reflectindo uma mestiçagem nova, fortalecida, com uma presença mais forte do que nunca nas universidades, mas também fora, colectivos, movimentos independentes, trânsito entre periferias. No site http://azmina.com.br conta-se como nos pimórdios da revista está um protesto de uma paulista, formada em comunicação na USP (a grande universidade pública da cidade): “A História d’AzMina começa em 2014, quando Nana Queiroz conheceu os resultados da pesquisa do IPEA ‘Tolerância social à violência contra as mulheres’ que concluiu que, para 26% dos brasileiros, mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas. Indignada, Nana foi até o Congresso Nacional, tirou a camisa e escreveu no corpo ‘Eu Não Mereço Ser Estuprada’, usando a nudez política para simbolizar que, mesmo sem roupa, as mulheres merecem dignidade e proteção contra a violência sexual. Ao protesto de Nana somaram-se centenas de milhares de mulheres no Brasil. Essa foi a primeira vez em que milhares de mulheres puderam falar sobre a violência sexual que haviam sofrido e encontrar na internet o apoio de outras mulheres.” Em sequência, Nana Queiroz fundou AzMina, e aí está a revista até hoje, bem activa na turbulência política de 2016. Mas além de escrever nela, e no Globo, o trabalho diário de Ana Paula é com a Agência de Redes para Juventude, plataforma fundada em 2011 com bolsas, oficinas e cursos para estimular jovens das favelas, entre 15 e 29 anos, a criarem os seus próprios projectos (ganhou um prémio da Gulbenkian em 2014).
3. O dia em que os deputados votaram no Congresso a favor do impeachment de Dilma “foi muito dolorido”, diz Ana Paula. “Eu assisti a toda a sessão em casa da minha sogra, e era de se pensar o que essas pessoas estavam fazendo lá.” A casa da sogra de Ana Paula, tal como a dela, é na Maré, o grande complexo de favelas que recebe quem aterra no aeroporto internacional do Rio de Janeiro. “Todo o mundo estava assistindo com o mesmo sentimento. Aquilo [Congresso] era a bancada BBB, para defender Bala, Bíblia e Boi.” Mistura de fundamentalistas cristãos, ruralistas do agronegócio e polícias ou gente ligada ao armamento. “Foi a primeira vez que ficou tão claro quem eles eram, porque na TV passam aqueles gráficos, com cadeirinhas coloridas. Ali, era o corpo, a voz, os seus cinco minutos para falar. O ruim é isso ter acontecido em 2016, se fosse mais para a frente, o gás para as eleições seria maior. Muita coisa ainda vai acontecer.” Mas Ana Paula não crê que a periferia se vá envolver nos partidos. “Ainda não está pronta, apesar do desejo de se auto-representar, não acredita nas instituições, a maioria das pessoas tem um pé atrás. Teria de ter uma reforma política.”
4. Ana Paula encara o que escreve como parte de um movimento da sua geração, “de conversar com gente machista, homofóbica, reaccionária, com o macro e o micro, de ter uma certa paciência para trazer eles para o nosso lado”. A mãe dela é empregada doméstica, o pai trabalha como mecânico, ela nasceu na Baixada Fluminense, zona contígua ao município do Rio que tem alguns dos índices de desenvolvimento mais baixos do estado. Morou no Morro de São João, uma favela longínqua, e em 2012 veio como aluna para o Observatório das Favelas, que fica na Maré. No ano seguinte mudou-se para lá, e entretanto casou. Entretanto, o exército que ocupara a Maré saiu. Durante anos, esteve anunciado que viria uma Unidade de Polícia Pacificadora, vulgo UPP, mas não. “O Beltrame [secretário de segurança] já deixou claro que não vai ter, não tem dinheiro. Então a gente vive incursões da polícia do BOPE [tropa de elite].” A grande diferença de mudar para a Maré foi a favela ser plana, acessível e a vibração de um complexo “que tem coisas acontecendo 24 horas”.
5. Não muito longe, do outro lado da Avenida Brasil, que é a grande via de entrada no Rio, está o Complexo do Alemão, outro grande aglomerado de favelas, mas em morro. Aí cresceu Raull Santiago, 27 anos, um dos fundadores do Coletivo Papo Reto. Têm entre 16 e 40 anos, e são quatro homens e quatro mulheres, todos do Alemão menos uma pesquisadora que está em Inglaterra. A primeira vez que liguei a Raull, pelo watsapp, ele atendeu em cima da moto, pediu meia hora para chegar. Parece estar sempre ligado. Descreve o Papo Reto como “uma ferramenta de direitos humanos para fortalecer” quem sempre esteve de fora. “A falta de políticas públicas na favela faz a gente ter uma violência muito grande. O estado dialoga com a favela só através da polícia. E a gente expõe o que a polícia faz.” Usando fotografia e vídeo como prova de abusos, aquilo a que Raul chama “comunicação de resistência”. Mas não apenas, também “publicidade afirmativa”, ou seja “mostrar que a favela não tem só violência, dar visibilidade a ideias, projectos, pessoas, porque nos grandes veículos apenas a pauta da violência ocupa espaço”.
6. Quando o Papo Reto foi fundado, em Março de 2014, “todo o mundo [do grupo] já tinha anos de activismo, usava rede social para postagens de luta”. Aí, acontecem as grandes manifestações de 2013. “Isso acaba trazendo força. Eu estava lá, postando coisas. A Internet virou uma fonte de informação, disputando a cobertura.” E expondo a grande desconfiança em relação ao sistema político tradiconal, também Raull o diz. “A política está muito desacreditada para quem vem de áreas mais pobres. Mas eu vejo isto [impeachment de Dilma] como um golpe, por parte de forças racistas, preconceituosas, apesar de eu não fazer parte do PT. E se a Dilma sair, a gente tem de se organizar para ver o que vai fazer. Essa situação abriu uma brecha para quebrar o ciclo das famílias dominantes no Brasil.” Ou seja, Raull vê o momento como uma oportunidade. “A gente tem a hipótese de pegar essa crise e inserir novas lideranças, novos olhares, trazer para nós a responsabilidade. Essa discussão está acontecendo nas favelas agora: o que a gente pode fazer? O momento é de muita discussão, nas esquinas, nos bares, nas redes sociais. Tenho 20 grupos de whatsapp todos falando de política no Brasil. Grupos locais do Rio, Rio-São Paulo, grupos nacionais. Então o debate acontece de forma presencial e pela Internet, com várias ferramentas.” Saindo da toca, onde o estado foi largando quem não cabia no lugar ao sol.