A solidão faz mal ao coração. Literalmente

As pessoas que se sentem sós ou socialmente isoladas têm um risco acrescido de 30% de sofrer uma doença cardíaca ou um acidente vascular cerebral, conclui uma meta-análise de 23 artigos científicos. As relações que temos com os nossos amigos ou família são cada vez mais um indicador da nossa saúde.

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Estudos anteriores já tinham associado a solidão a um sistema imunitário comprometido, pressão arterial elevada e até a morte prematura Miguel Madeira

A solidão pode provocar sérios danos na sua saúde. Mais precisamente na sua função cardíaca. Assim como o isolamento social ou a morte de um companheiro. As provas científicas sobre os efeitos das relações sociais na saúde física aumentam de dia para dia. Um estudo publicado esta semana na revista Heart, uma das publicações do grupo BMJ, mostra que estar só ou socialmente isolado vale tanto como a ansiedade ou a tensão no trabalho, quando estamos a falar factores de risco para problemas cardíacos ou AVC (acidente vascular cerebral). Outro estudo, publicado também este mês, já tinha revelado que quem perde um companheiro ganha um risco acrescido de 41% de apresentar um perigoso batimento cardíaco irregular. Mais há mais estudos. Até a felicidade pode fazer mal ao coração.

Antes de mais, um esclarecimento prévio: solidão e isolamento podem coexistir, mas não são a mesma coisa. Uma pessoa pode estar rodeada de gente e sentir-se só e pode estar isolada sem se sentir sozinha. O que um grupo de investigadores do Reino Unido agora vem dizer é que quer uma coisa quer outra (ou as duas) significam um risco para a saúde. Mais, precisamente um risco acrescido de 30% de doenças cardíacas ou AVC. A culpa da solidão não nasceu aqui e agora. Estudos anteriores já a tinham associado a um sistema imunitário comprometido, pressão arterial elevada e até a morte prematura. Agora, chegou a altura de afirmar – com provas científicas – que faz mal ao coração.

Nicole Valtora, do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade de York, é a primeira autora do artigo que partiu da análise de 16 bases de dados com estudos publicados até Maio de 2015. Os investigadores encontraram 23 artigos científicos relevantes. No total, segundo um comunicado de imprensa, esta meta-análise abrange mais de 181 mil adultos, 4628 casos de doença cardíaca (ataques cardíacos, anginas, morte) e 3002 AVC registados durante períodos que variam entre os três e os 21 anos.

A análise dos dados revelou que a solidão e o isolamento social estavam associados a um risco acrescido de 29% de um problema como um ataque cardíaco ou uma angina e de 32% de sofrer um AVC. Os investigadores sublinham que este é um estudo baseado nas observações de resultados de outros trabalhos, logo não pode ser retirada nenhuma conclusão definitiva sobre a relação causa-efeito. Aliás, sublinham, não foi sequer possível excluir a possibilidade de um impacto inverso, ou seja, pessoas com uma doença não diagnosticada mas que, por causa dela, fossem menos sociáveis.

Por outro lado, os autores deste trabalho também reconhecem que a solidão e o isolamento podem levar a comportamentos que são tudo menos saudáveis. Desde má alimentação e hábitos tabágicos até consumo de álcool e fraca (ou inexistente) actividade física regular. Um modo de vida que, obviamente, aumenta o risco de todo o tipo de doenças.

Ainda assim, segundo sublinha o comunicado de imprensa, os resultados desta meta-análise coincidem com uma preocupação cada vez mais presente nas discussões de saúde pública, onde os factores sociais têm vindo a ganhar importância. “O nosso trabalho indica que a abordagem da solidão e isolamento pode ter um papel importante na prevenção de duas das principais causas de morte nos países desenvolvidos”, defendem os investigadores no artigo na revista “Heart”.

No editorial da mesma revista, Julianne Holt-Lunstad e Timothy Smith, da Universidade Brigham Young (no Utah, EUA), reforçam a sugestão dos investigadores e propõem que os factores sociais sejam incluídos de forma clara na educação médica, na percepção do risco de saúde e em orientações oficiais ou políticas. O que querem, dizem, é que a situação pessoal e social de um doente – o facto de ser casado ou não, o estado dessa união, o ter amigos, vida social ou família próxima – seja tida em conta num processo clínico. Que não seja apenas uma nota quase irrelevante à margem da sua história clínica. “Tal como os cardiologistas e outros profissionais de saúde assumiram fortes posições públicas sobre outros factores de risco para doenças cardíacas, como fumar ou dietas ricas em gorduras saturadas, é preciso dar mais atenção às relações sociais, com mais investigações, sistemas de vigilância de saúde pública, prevenção e intervenção”, escrevem.

Rui Cruz Ferreira, coordenador do Programa Nacional Para as Doenças Cardiovasculares, concorda. “A medicina personalizada, o caminho que devemos fazer, é isso mesmo: ter em conta tudo o que afecta o indivíduo”, defende o cardiologista em declarações ao PÚBLICO, reconhecendo, no entanto, que, na prática, os especialistas valorizam sobretudo os factores de risco que estão suportados em fortes e documentadas provas científicas. “A questão dos factores sociais e pessoais é uma zona difícil de ter determinantes científicos e que, por vezes, é erradamente esquecida. Os factores psicossociais são mais difíceis de avaliar – são questões como a carga hereditária, a depressão, problemas laborais, entre outros –, mas são importantes e podem ser um caminho para uma doença”, nota Rui Cruz Ferreira. Assim, as conclusões deste estudo não surpreendem o cardiologista, que conclui: “Tudo importa. Tudo deve importar. A medicina personalizada tem de se preocupar com tudo o que afecta o indivíduo. Isso é que define a arte [da medicina]. Senão uma máquina faria o mesmo ou melhor do que nós.”

Morrer de coração partido

Pode-se morrer por causa de um coração partido, revela estudo era o título da notícia publicada este mês pela agência AFP sobre o trabalho de Simon Graff, da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Depois da análise de dados relativos a quase um milhão de pessoas, o investigador concluiu que quem perde um companheiro pode aumentar em 41 % o risco de desencadear um batimento irregular do coração, conhecido como fibrilação auricular, e que muitas vezes resulta num AVC ou numa paragem cardíaca. O risco, argumenta Simon Graff no artigo publicado online a 5 de Abril na revista Open Heart, pode permanecer acrescido durante um ano e é maior para quem tem menos de 60 anos e é confrontado com uma inesperada viuvez. 

A conclusão é facilmente extrapolada. Tal como se fala da morte de um companheiro há outras coisas dramáticas que nos acontecem na vida e que podem fazer mal ao coração, fazendo disparar o risco de um ataque cardíaco, ou AVC, como estudos anteriores já tinham mostrado. Mas Simon Graff quis explorar especificamente os casos de fibrilação auricular após uma situação de viuvez. Para isso, foram recolhidas as informações de mais de 88 mil pessoas com o diagnóstico de fibrilação auricular e mais de 886 mil pessoas saudáveis. O estudo mostrava que o risco de surgir esta arritmia era mais elevado no período entre os oito e os 14 dias após a perda e depois começava a diminuir gradualmente. Um ano após a viuvez, o risco era praticamente o mesmo do que o resto da população que não tinha sofrido uma perda. Ou seja, o coração é atingido pelo desgosto, fica descontrolado, mas passa.

Mais uma vez há duas ressalvas a fazer e que são basicamente as mesmas que foram feitas no estudo anterior. Por um lado, os investigadores dinamarqueses alertavam que não era possível retirar deste estudo conclusões definitivas, dado que também foi apoiado numa análise de bases de dados já existentes. Por outro lado, escusado será dizer que a morte de alguém próximo pode levar a depressões, perda de apetite e de sono e também à adopção de outros comportamentos pouco saudáveis como o abuso de álcool.

“Síndrome do coração feliz”

Tudo isto são más notícias para todos. Para quem vive sozinho, infeliz ou em isolamento social e surge agora como um forte candidato a problemas de saúde do tamanho de um AVC ou de um ataque cardíaco. Mas também para quem não está sozinho e corre o risco de perder o companheiro e, com isso, aumenta o risco de algo tão grave como um AVC ou um ataque cardíaco ou perigoso como uma fibrilação auricular.

Como se isso não chegasse há mais uma informação recente: a felicidade também pode fazer mal ao coração. Outro estudo divulgado em Março mostra (só faltava esta!) que momentos felizes e intensos como um nascimento, um casamento ou uma surpresa também podem causar sintomas idênticos a um enfarte. Mais precisamente, podem causar os mesmos sintomas de uma patologia cardíaca conhecida como miocardiopatia de Takotsubo, ou na linguagem mais comum “síndrome do coração partido”. Trata-se de uma situação reversível, conhecida pelos cardiologistas e descrita pela primeira vez em 1990, que provoca os mesmos sintomas de um enfarte (com dor no peito e alterações no electrocardiograma, entre outros sintomas), mas sem que seja encontrada nenhuma artéria obstruída e que é geralmente desencadeada por um episódio de stress físico ou emocional. Se a miocardiopatia de Takotsubo estava associada a situações negativas, o novo estudo publicado na revista European Heart Journal relaciona estes casos com momentos felizes. E assim temos o que alguns já chamam de “síndrome do coração feliz”. 

Este estudo, de investigadores da Universidade de Zurique, na Suíça, analisou dados dos primeiros 1750 doentes com a "síndrome do coração partido", concluindo que 485 tinham passado por uma intensa situação emocional. Tal como se previa, em quase todos os casos (96%) estava em causa uma situação negativa. Mas, o mais curioso terá sido descobrir que em 4% dos casos o gatilho terá sido um momento de felicidade. Numa das situações, foi uma vitória do clube de futebol do doente. Será então correcto dizer que o futebol pode fazer mal ao coração?

É provável que um dia alguém chegue à conclusão de que são os estudos sobre o que nos pode partir o coração que ainda nos vão partir o coração. 

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