Pedro Costa em Locarno: "Este não é um filme de ruínas"
O realizador de O Sangue trouxe ao festival suíço a sua mais recente longa-metragem. Cavalo Dinheiro é uma fantasmagoria opaca e sumptuosa, passado ao longo de uma "noite Baudelairiana".
Continua, então, o desabafo que não devia dizer. "Mas não sonho fazer filmes como estes. Há muita morte nos meus filmes e não gosto disso, mas não sou capaz de o evitar. Faço o que sinto que tenho de fazer agora. São os filmes que faço, não os que quero fazer, mas como no Padrinho de Coppola, o mundo parece impelir-me..."
A frase fica em suspenso, como muitas das que Costa pronuncia ao longo de cerca de meia-hora. Antes, Cavalo Dinheiro havia tido a sua primeira projecção pública, depois de uma sessão privada para a indústria e outra para a imprensa, onde as reacções estiveram longe de ser unânimes, indo da rendição total e absoluta à perplexidade ou à rejeição. Alguém disse, à saída, ser "um filme sublime que nos reconcilia com o cinema", ao lado uma senhora confessava, "francamente passou-me alguma coisa ao lado". Outros manifestaram "mixed feelings" sobre um filme talvez demasiado português para ressoar com uma audiência internacional, cheio de referências ao 25 de Abril.
Não é por acaso: Cavalo Dinheiro regressa a Ventura, o emigrante cabo-verdiano que se tornou na "trave mestra" dos seus filmes desde Juventude em Marcha (2006), e coloca-o numa espécie de "descida aos infernos". 104 minutos de uma viagem sem regresso no comboio-fantasma de um Portugal assombrado pela guerra colonial, pela revolução, pela descolonização, com Ventura como Orfeu em busca de uma Eurídice fantasma perseguido pelas assombrações do seu passado.
Depois de uma leve insistência de Mark Peranson, Costa admitirá que, como nas colaborações anteriores com Ventura, Cavalo Dinheiro é um filme nascido de histórias e conversas. "Sou quase da mesma idade do Ventura, e estávamos no mesmo lugar quando a revolução aconteceu," disse o cineasta, que tinha 13 anos aquando do 25 de Abril. "Tive muita sorte em ser um rapaz novo nessa altura, descobri a música, a política, as miúdas, tudo ao mesmo tempo, e era um pouco cego. Precisei destes 30, 40 anos para perceber que o Ventura estava no exacto mesmo lugar que eu mas a chorar, com medo. Eu gritava slogans e palavras revolucionárias, e ele estava escondido com os seus amigos emigrantes."
O 25 de Abril é o "epicentro" de uma fantasmagoria elíptica, esquiva, fugidia, onde as coisas não seguem uma lógica narrativa convencional. Cavalo Dinheiro parece ser o delírio de Ventura no quarto de hospital onde o vemos no princípio do filme, um testamento à beira da morte, vendo a sua vida a passar à frente dos olhos. Mas Pedro Costa não desvendará os seus segredos nesta conversa - "tudo está no filme," dirá repetidamente, "o que há para dizer está no écrã". Ainda assim, adianta que Cavalo Dinheiro foi um filme "muito difícil, devastador de fazer" - "ao longo da nossa amizade de vinte anos o Ventura tem-me contado histórias do que ele chama a sua 'prisão'. Ele está muito doente, e tenta lembrar-se delas, mas talvez isso não seja o melhor. Outras pessoas fazem filmes para recordar, mas este não, penso que é um filme para esquecer."
E um filme que se passa "num presente eterno", como descreve, ao longo de uma noite que era "suposta ser estranha, poética, com algo de Baudelaire", rodada em cenários quase inteiramente reais - à excepção de uma longuíssima cena num elevador (já na origem da curta de 2012 Sweet Exorcist, contribuição para o filme colectivo Centro Histórico), um cenário onde Costa diz que a equipa esteve "durante meses, sem rodar, só a conversar. O Ventura contava histórias, conversávamos, bebíamos, tentávamos estar oito horas no elevador." Como se fosse um horário de expediente - e Costa admite ter a "maldição" de fazer filmes que "mostram o trabalho". "O Ventura vem da construção civil, e por isso não é uma metáfora, é por isso que o filme fala tanto de tijolos e cimento. O filme é uma construção tal como um prédio, trata-se de colocar um tijolo, outro, construir algo, qualquer coisa forte, emocional, sentimental. Tudo vem disso. As pessoas com quem trabalho precisam disso, e fazemo-lo há anos."
Quem esperava do novo filme a arte povera da trilogia das Fontaínhas terá certamente ficado surpreendido com a gloriosa pictorialidade de Cavalo Dinheiro, objecto formal de cortar a respiração, confimando o realizador como um dos mais extraordinários criadores de imagens do cinema moderno. Um jornalista aponta que é um filme "muito expressionista", cita directamente Murnau e John Ford, e Costa, com um sorriso meio trocista, diz "vocês são malucos". "Não tenho tempo para pensar nas coisas dessa maneira," diz. "Somos uma equipa muito reduzida, três pessoas a filmar, mais os actores, temos muito trabalho para fazer. Se essas referências estão visíveis, é porque são algo que está dentro de mim, sempre esteve e sempre estará." E diz que não houve especial diferença de método nem de abordagem entre este e os anteriores filmes.
Mas - lá está o desabafo... - "tenho a sensação que os meus filmes não permanecem como deviam. Não me sinto forte como os cineastas que admiro, como Godard ou Jean-Marie Straub, que são muito fortes. Eu não sou e as minhas coisas têm tendência a dissolver-se. Faço o que sinto que tenho de fazer agora, mas estes não são os filmes que gostaria de fazer." Não dirá quais são, apesar de Mark Peranson o "picar". "Mas o mundo talvez não precise dos outros filmes que eu quereria fazer." E, quando lhe perguntam se este é um filme sobre Portugal, hoje, Pedro Costa responde que talvez seja. "Talvez, não sei. Mas isso está no filme. Só não o vejam como um filme de ruínas, ou Portugal como um país de ruínas. Não é nada disso."