Líbia acelera a descida aos infernos, ameaçando a região e a Europa
Depois da “guerra de todos contra todos”, as milícias estão a polarizar-se entre duas alianças rivais, o que pode suscitar um cenário de guerra civil. De resto, a Líbia continua a ser um país sem Estado
As embaixadas fecham e os trabalhadores estrangeiros fogem. Analistas advertem contra o risco de uma escalada em direcção a uma verdadeira guerra civil. O Fezzan, no Sul do país, estaria a tornar-se num “santuário” para jihadistas vindos do Mali.
A Câmara dos Representantes (CR), o novo parlamento eleito em Junho, está reunida desde segunda-feira em Tobruk, no extremo oriental do pais, para fugir aos combates e evitar ser sequestrada por milícias, como aconteceu ao anterior parlamento. A CR apelou a um cessar-fogo sob controlo da ONU. Entretanto, os deputados de Misurata já declararam “inconstitucional” esta CR.
O caos armado
Caos é o mais frequente termo que se usa ao falar da situação líbia. Alguns falam em risco de “somalização”. Centenas de milícias armadas - e em muitos casos pagas pelo governo - combatem entre si e disputam os recursos. A Líbia continua a ser um país sem Estado.
Os jornalistas precisam de definir politicamente as alianças em confronto. À falta de melhor, falam em “islamistas”, “liberais” ou “nacionalistas”. O britânico Jason Pack, presidente do grupo Libya-Analysis, esclarece: “O que pode parecer uma luta ideológica é em grande medida uma competição económica entre duas redes criminosas rivais.”
Três anos após a queda de Khadafi, a Líbia permanece caótica. As tribos não chegaram a um acordo político, antes se digladiam. Governos e parlamentos fazem proclamações democráticas mas não são os actores reais. Estes são as tribos, as cidades, as regiões e as tradicionais redes de patrocínio. Há fortes correntes islamistas e até alguns liberais na Líbia. “Mas a História ensina que os reflexos tribais e regionalistas são molas infinitamente mais poderosos do que os conceitos ideológicos e doutrinais”, escreve Slimane Zeghidour, analista franco-argelino.
A ideia do general Haftar
A Líbia está a polarizar-se, perigosamente, entre duas alianças rivais. Em Maio, o general Khalifa Haftar — que participou no golpe de estado de Khadafi em 1969 e depois viveu 20 anos exilado nos EUA — lançou uma ofensiva contra as milícias islamistas de Bengasi com o objectivo libertar a Líbia “do poder da Irmandade Muçulmana”. Chamou-lhe “Operação Dignidade”. Tem uma milícia poderosa e aliou-se aos Zintan. Inspirava-se no Presidente egípcio e na sua campanha contra os islamistas. O general Sissi é popular em grande parte da Líbia. O problema é que Haftar tem uma milícia e Sissi o mais poderoso exército árabe.
Produziu um efeito perverso. Uniu todos os bandos islamistas que se sentiram ameaçados. E levou a poderosa milícia de Misurata, uma cidade comercial, a aliar-se aos islamistas. Haftar foi expulso de Bengasi. Está entrincheirado, noutra cidade da Cirenaica, à espera de segunda oportunidade.
Outro factor foi a derrota dos islamistas nas eleições de Junho. Perderam o controlo do parlamento o que, combinado com a operação de Haftar, os fez lançar uma escalada militar. Zeitan e Misurata são rivais. Lutam pelo poder económico e pela influência em Trípoli. A milícia de Zeitan controla os terminais de petróleo da Tripolitânia; a de Misurata domina uma parte dos terminais de Sirte. O aeroporto tem dupla importância. Permite o controlo do contrabando, fonte de riqueza, e dominar a capital, exercendo pressão militar sobre o governo e os deputados. Por isso os “notáveis” de Misurata mudaram de campo.
Uma ameaça internacional
Ninguém consegue desarmar as milícias. São a garantia dos interesses tribais e locais. Alguns analistas consideram que, neste momento, desarmar as milícias é uma ideia quixotesca e até perigosa. Preferem uma negociação sob égide internacional, entre actores reais como Zeitan, Misurata ou Bengasi.
A situação é tão mais explosiva quanto mais alto é o que está em jogo, explica Frederic Wehrey, do think tank Carnegie: “Das redes de contrabando às posições estratégicas como os checkpoints nas fronteiras, as instalações petrolíferas, os arsenais militares, os portos e, talvez mais importante, os aeroportos.”
Os árabes estão ocupados com a Síria e o Iraque. A Argélia e o Egipto recusam-se a intervir na Líbia. Os europeus estão a braços com a crise da Ucrânia. Os italianos lançam alarmes. Para lá do seu interesse no gás líbio, temem que um cenário de guerra provoque uma nova e incomensurável vaga de fugitivos e crie um novo “santuário terrorista”.
Escreve o jornalista italiano Alberto Negri: “E a Europa? Enquanto em casa explode a Ucrânia, aguarda-se que os sonâmbulos de Bruxelas despertem também para o Mediterrâneo que, até prova em contrário, é ainda uma fronteira da Europa.”