Uma história de resistência

A obra do albanês Ismail Kadaré (n. 1936) foi já distinguida com diversos prémios - entre muitos outros, contam-se o Man Booker International Prize (2005) e o Príncipe das Astúrias (2009); o seu nome é, desde há muito, repetidamente referido como um sério candidato ao Nobel. Kadaré - que durante uma visita a Paris, em 1990, pediu asilo político às autoridades francesas - é autor de romances (e algumas novelas) mordazes e irónicos e em que o destino mais parece um jogo de máscaras e de rumores. Não raramente ele tomou a antiguidade clássica (“o mito ilumina o labirinto”) como modelo narrativo e social, não apenas como uma tentativa dissimulada de escapar à censura da ditadura de Enver Hoxha, mas também para assim melhor analisar as maneiras de funcionamento dos mecanismos do poder e como este se alimenta. As histórias de Ismail Kadaré, quase sempre impregnadas de uma espécie de monotonia cómico-trágica, ora tomam a forma de parábola sobre a tirania ora ensaiam uma releitura da História contemporânea (não apenas da Albânia mas também de outros países que viveram sob o jugo estalinista); na sua escrita, quase sempre soberba e irónica, ele parece querer encontrar - se é que tal é possível - um qualquer vestígio de sentido naquele mar de demência que é tão característica dos Estados totalitários.

Os Tambores da Chuva - romance originalmente publicado na Albânia em 1970 e revisto uma vintena de anos depois já no exílio francês - tem, mais uma vez, a região balcânica como cenário. Nesta sua procura identitária, de um país na encruzilhada de culturas e de religiões, este romance de Kadaré traz-nos à memória esse grande épico da literatura europeia que é A Ponte Sobre o Drina (Cavalo de Ferro, 2007), do sérvio Ivo Andric - e numa outra perspectiva, também O Meu Nome É Vermelho (Presença, 2007), do turco Orhan Pamuk.

Estamos no século XV e o enorme exército otomano do sultão Murad II - comandados pelo paxá Tursum - cerca uma sombria cidadela albanesa que está sob as ordens de George Castrioti Scanderberg (1403-1468) - que se tornará no herói nacional da Albânia. (Este Scanderberg não é uma personagem do romance mas a sua sombra voga sobre toda a história.) A diferença de forças e o poderio de fogo (sobretudo as “novas armas” - canhões de grande calibre) não auguram nada de bom para os sitiados. “O exército mergulhava nas trevas, mas, a partir da madrugada, mais resplandecente do que um tapete persa, desdobrar-se-ia em todas as direcções. Um verdadeiro desabrochar de plumas, pavilhões, crinas, estandartes brancos e azuis, centenas e centenas de crescentes em cobre, em prata e seda, como se se tratasse do despertar de um sonho. E, no meio dessa orgia de cores, a cidadela, exibindo no topo o instrumento de tortura, a cruz, pareceria ainda mais funesta. Ele viera do fim do mundo para derrubar aquele símbolo.” (pág. 12)

Cada capítulo da narrativa é antecedido de duas páginas escritas sobre como estão as coisas a ser sentidas no interior do castelo, mas toda a história se centra nas actividades bélicas dos sitiantes. Há no meio das forças otomanas um cronista que tem como missão, ao que parece, fazer uma descrição poética da batalha (imortalizando a vitória) e dos dias que a antecederam. É este cronista que se vai cruzando com várias personagens (tão trágicas como cómicas) que nos dá a ideia de que aquela batalha, mais do que ser entre o Crescente e a Cruz é entre as “antigas formas de guerra” e o surgimento de novas armas - os mais tradicionalistas de entre os conselheiros do paxá consideram que os esquemas do engenheiro e do arquitecto são desenhos que têm a marca do diabo. No meio disto, o paxá - que cumpre funções de mediação entre o “velho” e o “novo” - duvida se esta guerra de que o sultão o incumbiu lhe foi dada como uma oportunidade de glória ou como um “cálice envenenado”. Logo após o primeiro assalto, percebe-se que a tomada daquela cidadela não é tarefa fácil. O paxá tem de organizar novos esquemas de guerra, que passarão pela construção de túneis, por atirar sobre as muralhas caixas com ratos doentes... Mas o resultado começa a adivinhar-se cedo. “O Sol punha-se. Os primeiros carros carregados de cadáveres regressavam. O sangue pingava, de diferentes sítios, entre as rodas. O campo estava quase sem vida. Um batalhão de sapadores, transportando pás e enxadas, passou. Iam sem dúvida abrir valas.” (pág. 268)

Sem o objectivo do realismo histórico, Ismail Kadaré escreveu uma impiedosa e impressionante história de resistência que à época em que foi publicada terá caído bem ao regime de Hoxha, pois vivia-se na Albânia um sentimento de cerco, dois anos depois de a União Soviética ter invadido a Checoslováquia.

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