BDSM: falta educar a sociedade para vencer o estigma

Profissionais apelam à revisão dos manuais que consideram o BDSM uma perturbação mental. Estes comportamentos podem ser “saudáveis e apropriados” — o estigma é que causa angústia

Shibari, técnica japonesa de bondage manos_simonides/Flickr
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Shibari, técnica japonesa de bondage manos_simonides/Flickr
A coleira é um símbolo de compromisso grendelkhan/Flickr
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A coleira é um símbolo de compromisso grendelkhan/Flickr

Antes de mostrar a Anastasia o seu Quarto Vermelho da Dor e, consequentemente, a sua inclinação por práticas BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação e Submissão e Sadomasoquismo), Christian Grey estende-lhe um acordo de confidencialidade para assinar. Não quer que ela revele nada a ninguém. E aqui pode estar um sintoma do estigma que os praticantes têm de enfrentar.

“A existir alguma angústia nos praticantes de BDSM, não é por causa destes comportamentos, mas da reacção social a que estão associados”, diz Alexandra Oliveira, professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP). "Nas investigações, é muito evidente que o facto de terem de esconder que têm determinado comportamento, o facto de saberem que existe uma marca negativa associada e haver uma estigmatização é que as faz sentir mal, não é terem o comportamento. E há estudos que dão conta que até podem ser apropriados e saudáveis.”

Aliás, as “discrepâncias” entre estas e as típicas relações normativas “não são assim tão evidentes”. Esta foi uma das conclusões que a psicóloga Ana Mafalda Ventura Mota retirou da tese de mestrado “Para Além Da Dor: Fantasias de Prazer, Poder e Entrega. Um Estudo Sobre BDSM” (em pdf), defendida no ano passado na FPCEUP, pela qual obteve 18 valores. Durante um ano, acompanhou a comunidade em Portugal, primeiro a partir dos dois grandes fóruns online (BDSM Portugal e Dominium), depois, guiada pelo seu “informante chave”, em festas e um jantar, e, por fim, com entrevistas presenciais e também em chats.

O perfil de praticantes que Mafalda encontrou nas suas pesquisas

Há, de facto, uma “multiplicidade de relacionamentos” dentro do BDSM: os relacionamentos “baunilha” que procuram depois um parceiro BDSM para satisfazer necessidades, sem existir uma ligação psico-afectiva; os relacionamentos “instrumentais”, sobretudo no âmbito da dominação profissional, onde até existe uma certa “indiferença sexual”, já que muitos, nomeadamente as dominadoras, não procuram nesta prática prazer sexual, mas sim mental; e, “o mais interessante”, diz a investigadora, as relações amorosas que têm no BDSM “uma parte muito importante”, que “são um contínuo entre as relações ditas normais e estas práticas”. "A verdade é que as relações são estabelecidas com base na afectividade e empatia mútua”, diz. Daí que exista, por exemplo, uma transposição de elementos como a coleira, que funciona como um símbolo do compromisso, tal como a aliança.

Quem é que tem o poder? Dominador ou submisso? A investigadora responde

Não é posição de missionário? Perversão

É o DSM que é dado nas faculdades — isto pode inibir os BDSMers de ir ao psicólogo, caso necessitem, diz Alexandra Oliveira

A trilogia de E.L.James, ao relacionar as práticas BDSM com aspectos traumáticos, pode potenciar a estigmatização, alerta a investigadora. “Por um lado, explora estes comportamentos sexuais, mas por outro perpetua a visão normativa do que é a sexualidade ou do que deve ser a sexualidade”, ao focar-se nesta “concepção determinista”, talvez para “ir ao encontro das expectativas das pessoas”. “Isto não ajuda. Falta educar a sociedade para o que é o BDSM. É voluntário, é consensual, as pessoas estão avisadas e há cuidado.” Basicamente, são “pessoas normais, que se querem divertir e explorar o seu potencial erótico”, de uma forma bem mais leve, divertida e natural do que parece no livro.

Alexandra sente-se desiludida por as mulheres se identificarem com Anastacia. E se fosse um homem sub e uma mulher dom?

Há que ter em conta ainda que para esta percepção negativa contribui também a própria comunidade médica, já que o BDSM é considerado uma parafilia, considerada uma perturbação mental no DSM-IV, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, e estando também incluído na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Isto tem sido contestado por diversos profissionais de saúde por todo o mundo”, relata Alexandra Oliveira, nomeadamente a partir do movimento Revise F65 (a categoria das parafilias no manual da OMS). Nesse sentido, e “à revelia do que está nesses manuais”, há países que já deixaram de considerar estes comportamentos como doenças, como a Suécia, a Finlândia, a Noruega e a Dinamarca. 

Alguns BDSMers não procuram prazer sexual nas sessões, mas sim mental, conta Ana Mafalda Mota

“Estes diagnósticos de perturbação mental contribuem para reforçar os esterótipos. Não há evidência científica que há uma perturbação mental associada a estes comportamentos. E depois estes diagnósticos remontam a uma altura em que tudo que não fosse heterossexual ou tudo que não fosse a posição de missionário era considerado uma preversão sexual. A raiz está aí.”

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