Kony e o seu exército ainda semeiam o terror nos confins da África central
Mulheres e crianças raptadas para servirem de escravas sexuais ou soldados pelo Exército de Resistência do Senhor ficam marcadas pelo trauma, mesmo que escapem à milícia de Joseph Kony
Quando Jeanne Boliza olha para o seu filho de três anos, não pode deixar de lembrar o passado. Ele é o produto da sua tragédia como escrava sexual de um soldado do Exército da Resistência do Senhor (Lord"s Resistance Army, LRA), a brutal milícia liderada pelo autoproclamado profeta Joseph Kony. Jeanne Boliza, que era uma criança quando foi violada, chamou ao seu filho Dieu Donne (Deus Dado). Mas os seus vizinhos referem-se cruelmente a ele de outra maneira. "Chamam-lhe "filho do Tonga Tonga"", diz Boliza, agora com 17 anos. Significa "filho do LRA".
Nas selvas desta vasta região da África central, os aldeões debatem-se com as cicatrizes emocionais e psicológicas deixadas pela milícia de Kony, que sequestrou dezenas de milhares de crianças, obrigando-as a ser escravas sexuais ou soldados, que mutilaram e mataram membros das suas próprias famílias ao longo de quase três décadas. Estima-se que o LRA hoje esteja muito enfraquecido, com umas poucas centenas de combatentes. Mas permanece uma ameaça e os habitantes vivem com um medo constante, mesmo que os soldados ugandeses e americanos continuem a perseguir Kony para levá-lo à justiça. O LRA fez 11 ataques este ano aqui, na República Centro Africana, e 13 no vizinho Congo, referem as Nações Unidas e militares locais.
"As pessoas pegam nas suas coisas e vão dormir para o mato se suspeitarem que o LRA anda por perto", diz Lucie Koboura Morgode, uma assistente social do Mercy Corps, uma agência humanitária americana. "O trauma pode ficar para toda a vida".
Em Obo, uma aldeia tranquila no Sudeste da República Centro Africana, pode-se ouvir o medo na voz de Germaine Guinikpara, que foi repetidamente violada por Kony e forçada a espancar crianças e adultos até à morte. E também se vê nas cicatrizes de Guy Roger Mongozimbale, raptado aos 14 anos e obrigado a combater depois de lhe darem poções "mágicas".
O trauma também é aparente nos ataques de raiva e na solidão de Emmanuel Dada. Um soldado do LRA obrigou-o a atirar um bebé contra uma parede - e depois a espezinhá-lo até à morte. Mas não é essa memória a que o acorda à noite. A que ele ainda vê "como um filme" é a de "pegar fogo à igreja no dia de Natal", recorda, quase num sussurro. "Morreram tantos cristãos nesse dia."
Apesar de ter estado bastante discreto no último ano, Kony é alvo de um renovado foco de atenção por causa de um vídeo lançado por um grupo de defesa dos direitos humanos, Invisible Children, sobre os horrores praticados pelo LRA no Uganda, onde a milícia foi fundada. Mas há muitos anos que Kony e o LRA abandonaram o Uganda. Os seus alvos são as aldeias de um triângulo que abrange território da República Centro Africana, Congo e Sul do Sudão. Desde 2008, a milícia já matou mais de 2400 pessoas, raptou pelo menos 3400 e provocou a fuga de 466 mil.
Os Estados Unidos designaram o LRA como organização terrorista e o Tribunal Penal Internacional quer julgar Kony por crimes contra a humanidade. Em Outubro, o Presidente dos EUA Barack Obama enviou 100 soldados para colaborarem na captura de Kony.
Mas o medo ainda alastra. Em Zemio, a oeste de Obo, houve um dia em que os habitantes fugiram das suas cabanas quando viram homens armados a saírem da floresta. Mas eram soldados ugandeses. Para os líderes locais, estes são sinais de uma sociedade perpetuamente à beira do abismo. "Toda a nossa comunidade foi afectada psicologicamente", disse Martin Modove, um padre católico de Obo. "Sempre que há violência, pensamos que é o LRA."
Duas vezes vítimas
Germaine Guinikpara tem pensado muito em Kony. Raptada em Março de 2008, foi levada para o Congo, obrigada a fazer de burro de carga e espancada ao longo do caminho. Foi entregue a Kony, e entrou no seu harém de 40 ou mais "esposas". A primeira vez que o encontrou ele disse-lhe para não ter medo. "Mas se tentares fugir eu mato-te", avisou-a.
Durante o dia trabalhava nos campos ou cozinhava. À noite ficava numa casa com as outras "esposas". Kony transportava sempre uma lança que dizia ter poderes místicos que o protegiam, recorda. Todos os dias ia para uma montanha próxima agarrado a uma Bíblia para falar com Deus.
Guinikpara também aprendeu a matar. Primeiro recebeu ordens para matar um homem de 20 anos de Obo, seu familiar por afinidade, que tentou fugir. Ela e outros habitantes foram armados com paus e disseram-lhes para lhe "baterem na cabeça". "Tivemos que o matar, porque se não éramos mortos", conta. "Se deixássemos escapar uma lágrima éramos mortos. Ninguém chorou."
Ela fugiu no ano passado, durante o caos de um ataque. Mas em Obo os vizinhos evitam-na. Sabem que ela matou dos seus. Guinikpara tem medo de deixar a aldeia, mas também de ficar. "Os soldados de Kony conhecem-me bem", diz. "Serei a primeira a ser morta se eles vierem."
Guy Roger Mongozimbale tem pesadelos sobre a primeira vez que matou. Foi depois de Kony o avisar: "Não penses nos teus pais, se não matamos-te", recorda. A vítima era um vizinho que tinha tentado fugir. O LRA deu ordem a Mongozimbale e a mais outros 60 homens para o espancarem até à morte. Alguns dias depois, atacou a sua primeira aldeia e matou mais umas dezenas de pessoas. Tinha 15 anos, mas não era o soldado mais novo. "Havia um combatente de nove anos", conta. Num ataque em 2010 foi ferido numa perna e num braço e deixado para morrer. Mas um aldeão ajudou-o e voltou a Obo.
Antes de ser capturada, Jeanne Boliza estava noiva. Quando regressou, o seu noivo - que também foi raptado pelo LRA - manteve a sua promessa, mas só por causa das tradições da tribo.
"Havia a questão do bebé, mas o verdadeiro problema é que eu odeio o LRA, e eles já tinham feito dela sua esposa", explica Faustin Tanga quando a sua mulher não está a ouvir. "Se eu não tivesse prometido aos seus pais nunca me teria casado com ela."
Boliza deixou o filho com os avós. Ela sabe que ele vai crescer sem pai, insultado pelos outros. Perguntamos-lhe se ainda ama o seu filho, ela responde baixinho: "Sim." Exclusivo PÚBLICO/Washington Post