O Dia do Estudante de 1962
Não foi um levantamento de massas, acoplado ao Primeiro de Maio. Foi muito mais do que isso
No sábado dia 24 de Março, celebraram-se cinquenta anos do Dia do Estudante de 1962 (DE62). Sim, a data foi importante, mas não desencadeou a revolução. Foi um dos muitos momentos de falhanço do regime autoritário, só que muito mais volumoso que outros anteriores, em manifestantes e em agitação continuada. Não foi uma mera reacção juvenil a um convívio autorizado e depois proibido. Não foi apenas um passo em falso do regime, de que a oposição se teria aproveitado. Não foi nenhum levantamento de massas, acoplado ao Primeiro de Maio, clamando ao levantamento do Povo nas ruas e à luta contra a guerra colonial. Não, não foi nada disso. Foi muito mais do que isso.
Foi o primeiro grande sinal de desafectação da juventude universitária privilegiada, para com o regime que a hostilizava sem razão compreensível. Foi a repulsa de jovens assertivos e bem comportados para com um ministro da Educação mentiroso e sem palavra. Foi uma primeira grande divisão dentro do poder. Caetano não fracturou o regime, apenas o fendeu. Delgado tentou a fractura e foi esmagado. Caetano surpreendeu os estudantes num golpe político inteligente, juntando-se a eles na tarde do dia 24, no Estádio Universitário. Convidou todos para jantar no Restaurante Castanheira de Moura, a quase uma hora de caminho. Como seria possível movimentar centenas e já então milhares de estudantes pelo meio da cidade sem dar nas vistas e lançar o pânico no regime? Perante a carga da polícia no Campo Grande, que esperava Caetano? Restou-lhe a demissão, conquistando milhares de almas silenciosas e afastando-se das miudezas da política de baixos protagonistas. Vistas assim as coisas, tudo parece premeditado. Mas talvez não o tenha sido. Caetano acreditava num modelo de universidade com mestres e alunos em fraterno entendimento, desde que os primeiros decidissem e os segundos concordassem. Talvez tenha pensado ser possível surpreender o regime, circunscrever a repulsa, domando-a pela simpatia e controlar os seus jovens amigos, alguns dos quais atraiu ao poder seis anos depois.
Houve também outros factores. De todos o mais importante terá sido o trabalho das associações para desenvolver uma cultura democrática no quotidiano associativo, abatendo barreiras culturais pelo convívio entre os géneros, circulando pelo país pessoas, ideias, projectos e sonhos. Um fermento numa universidade bafienta, mas com uma massa estudantil à espera de o receber.
O DE62 surpreendeu pela mobilização espontânea de rapazes engravatados e meninas modestamente elegantes, tal como aparecem, compostinhos, nas fotografias. Surpreendeu pelo largo espectro social e político que atraiu: filhas e filhos de professores, médicos, advogados, oficiais do Exército, médios funcionários e até altos funcionários bem próximos do regime. Surpreendeu depois pela exemplar gestão da crise. Surpreendeu pela qualidade dos textos (comunicados), desde o primeiro ao último, onde esteve quase sempre a cabeça e a mão do Manuel Lucena. Pela capacidade de mobilização para locais diferentes, enganando as polícias sempre que se podia, preservando o aparelho tipográfico, sem que algum dia fosse descoberto. Montando redes de segurança pessoal de dirigentes. Comprometendo a direita, através de constantes entrevistas e pressões sobre professores e políticos fazedores de opinião. Adoptando posturas negociais flexíveis, como na interrupção da greve para acesso aos exames, evitando ter o movimento perdido por decisões sem recuo. É claro que tudo isto se conseguiu com muita luta e imensa discussão: entre radicais e moderados, entre comunistas e sociais-democratas (era assim que a "malta do Tatu" tratava os mais próximos de Sampaio), entre bons alunos que cumpriam deveres para com a família e bons fruidores da vida que já haviam convencido as paternidades de um ano perdido, entre urbanos de família politicamente convencida e rurais que recebiam postais e telefonemas angustiantes.
Dois grupos de pensamento tiveram papel de relevo: os católicos cada vez mais "progressistas", sobretudo depois da carta do bispo do Porto, do manifesto dos 400, da Revolta da Sé, e do Bom Papa João XXIII. Vítor Wengorovius foi o grande agregador deste grupo. Generoso até ao cansaço, imprimia autenticidade ao discurso. Muitos outros o apoiavam e seguiam. O segundo e porventura mais importante grupo foi o dos comunistas. Máquina bem organizada e bem oleada, penetrando pelas fendas abertas no sistema, mobilizada até ao sacrifício, manteve sobre as decisões colectivas a pressão sempre constante das soluções mais duras: manifestações, greve continuada. Provavelmente saiu deles a ideia da greve da fome, inteligentemente urdida pelo Eurico Figueiredo. Infelizmente, uma das peças ocultas mais importantes, José Bernardino, que controlava os estudantes do PC em Lisboa, já de há muito saiu do nosso convívio. Está por contar o seu importante contributo: os bilhetes postais ao Jorge Sampaio, o aparecer de manhã cedo, clandestino, no quarto do Eurico, os recados que enviava aos seus amigos que respeitavam a sua clandestinidade.
Foi desse balanço de três forças que se fez o equilíbrio da condução da luta. Nessa condução há a marca do Jorge Sampaio. Expulso Eurico para Coimbra, depois de uma prisão que o aureolou, afastado Sampaio para a advocacia, ficou José Medeiros Ferreira, eleito como dirigente das associações de Lisboa. Logo a seguir foi preso. A crise de 62 não cabe num artigo. Apenas se pode dizer que, depois dela, tudo foi diferente.