Recordar a Ferreirinha com as pratas da casa
Antónia Adelaide Ferreira marcou o século XIX português. Visita guiada a alguns cenários e retratos da sua vida, a partir desta semana, na Régua. Até Abril do próximo ano
O Museu do Douro (MD) leva-nos "de caleche" numa viagem ao que foi a vida de Antónia Adelaide Ferreira, a mulher que marcou a história do Douro no século XIX. É um dos carros puxado a cavalos, azul e cor palha, que esta duriense usou para percorrer as dezenas de terrenos e quintas que acumulou na sua terra, que acolhe o visitante da exposição Dona Antónia Adelaide Ferreira - Uma vida singular.
O hall de entrada do museu na Régua mostra também, num grande cartaz, uma fotografia de Dona Antónia ainda jovem, bem diferente daquela que foi registada pela câmara do fotógrafo Emílio Biel, depois reproduzida por dois retratos a óleo - diferentes - e finalmente imortalizada nos rótulos da que se tornaria uma das marcas mais famosas de vinho do Porto. Lá dentro, em dois pisos, o MD reconstitui, entre o Porto e o Douro, as várias facetas da vida e da acção desta mulher que ficou também imortalizada como a Ferreirinha.
A pré-inauguração da exposição realiza-se hoje, às 18h00, quando passam exactamente dois séculos sobre o nascimento de Antónia Adelaide Ferreira. Hoje irá ainda deccorer a cerimónia de entrega da 23.ª edição do Prémio Dona Antónia a Leonor Beleza, ex-ministra da Saúde e actual presidente da Fundação Champalimaud. A abertura da exposição ao público acontecerá só na sexta-feira, dia 8, num calendário que irá até 2 de Abril do próximo ano.
A efeméride do bicentenário calhou com as vicissitudes por que tem passado o ainda jovem MD. Se o calendário inicialmente previsto pelo seu director, Fernando Maia Pinto, tivesse podido ser cumprido, à exposição inaugural dedicada em 2008 ao Barão de Forrester teria sucedido outra sobre o Marquês de Pombal - Marquês & Cia.
O político visionário que foi responsável pela demarcação da Região do Douro e pela criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (1756) foi, contudo, ultrapassado por outra figura a quem a região não deverá menos. "Acabou por ser uma troca em boa hora", admite Maia Pinto, no decorrer duma visita que guiou o P2, na companhia da museóloga Natália Fauvrelle, a meio da semana passada, ainda em plena azáfama de montagem da nova exposição.
Nas oficinas do museu, algumas técnicas faziam os últimos retoques em retratos e peças ou limpavam as pratas - cedidas pela família e por várias instituições - que iriam ajudar a testemunhar o que foi o quotidiano desta mulher de perfil austero, com uma vida inteiramente dedicada ao seu Douro natal, onde viria também a morrer a 26 de Março de 1896, aos 84 anos.
Dois casamentos
No rés-do-chão, é reconstituída a vida burguesa no Porto de Dona Antónia e sua família - tanto os ascendentes, pai e avós, que lhe criaram um lastro cultural e material que viria a facilitar grandemente os seus negócios da vinha e do vinho, como os dois maridos.O primeiro, António Bernardo Ferreira Filho, playboy e homem do mundo, que haveria de morrer em 1844, aos 32 anos. "Diz-se que ele arruinou a fortuna do casal, mas acabou por deixar também um grande património com uma reserva de vinhos, uma biblioteca colossal, além de pratas e mobiliário", que faziam o recheio do palácio da Trindade, no Porto, explica Natália Fauvrelle, que, com a investigadora Isabel Cluny, é a responsável científica pela exposição.
Silva Torres (1808-1880) foi o segundo marido, casamento consumado em Londres (1856), após um nunca bem explicado episódio de tentativa de rapto da filha de AAF que terá mesmo envolvido o Duque de Saldanha, então primeiro-ministro de Portugal.
No centro da primeira sala pode ver-se a reconstituição do que era a sala de jantar do Palácio da Trindade: parte da mesa de 16 metros (pertença da Câmara Municipal do Porto) sobre um tapete de Arraiolos, decorada com peças da valiosa baixela de prata que o primeiro marido encomendou em Paris, quando quis ter uma igual à comprada para o czar russo!...
As certidões dos dois casamentos de Dona Antónia, retratos de membros da família e de figuras marcantes da época, e muitos outros documentos (uma carta de pêsames de D. Luís I, por exemplo) reconstituem o círculo de relações da Ferreirinha desde a sua terra até à corte, em Lisboa.
Há ainda uma sala dedicada ao negócio: livros de escrituração, fotografias de Domingos Alvão sobre os trabalhos no Douro, ou o exemplar da acção n.º 1 da empresa.
No piso de cima, prossegue o "simulacro" da reconstituição da vida no Douro. Entra-se pelo "portão" da Quinta do Porto, e está-se na casa duriense da Ferreirinha, nos antípodas da ostentação do palácio do período do seu primeiro marido no Porto: uma mesa para "jogar à bisca", o quarto, as roupas que usava (o pesado casacão preto, corpete e saiote idêntico ao que, segundo Camilo, a terá salvo do naufrágio no Douro que vitimou o Barão de Forrester), a capela, etc. Mas também o quotidiano da vida difícil dos trabalhadores, com a cardenha (dormitório) e os instrumentos do trabalho da vinha nesses anos difíceis das pragas (oídio e filoxera).
"A exposição é baseada numa ideia forte de cenografia", diz o director do MD, explicando que as dificuldades económicas do museu não permitiram apostar nas novas tecnologias "Se calhar, isso é uma vantagem, termos uma exposição menos virtual", acredita Maia Pinto, que lamenta, contudo, a impossibilidade de fazer acompanhar esta reconstituição da vida e da época com uma montagem teatral "que chegou a ser escrita por Mário Cláudio" e também com uma programação musical que completariam esta revisitação do Douro do século XIX.
Vai ser ainda lançado um catálogo com textos das duas comissárias e dos historiadores e investigadores: Conceição Andrade Martins, Jorge Pedreira, Gonçalo Vasconcelos e Sousa, Damião Velloso Ferreira, Fernando de Sousa e Carlos Melo Brito.